Meu presente de amigo secreto
Já é Natal e o ano acabou! Sei
que, ao contrário das crianças que só estudam,
para muitos adultos o Natal e o fim de ano não estão na
lista das datas preferidas. Para as crianças a última
semana do ano representa presentes do Bom Velhinho e da avó,
boas comidas e doces e
. férias. Nós adultos temos
que tentar fechar os projetos e trabalhos que a falta de tempo durante
o ano não nos permitiu concluir. Claro que o ano novo nos dá
alento para planejar o que vem e sonhar que realizaremos tudo no próximo
ano.
Mas o final do ano também é o
tempo daquele jogo do "amigo secreto". Presentes que a gente
recebe em troca de outro que a gente dá. Algumas vezes nos arrependemos
do que ganhamos em troca do que demos, mas isso também faz parte
da brincadeira. Fiquei pensando esses dias nos presentes que eu ganhei
no último amigo secreto. Ganhei livros, excelentes livros.
Para aqueles que tem amigos que gostam
de ciência ou usam a ciência no dia a dia, ou seja, todos
nós, aqui vão algumas dicas. O primeiro é o "Mundo
assombrado pelos demônios" de Carl Segan, aquele da série
Cosmos. O outro é o menos conhecido "Aqueles cães
malditos de Arquelau" de Isaias Pessotti, um professor universitário
de psicologia da USP.
Não vou fazer uma resenha desses livros.
Do segundo digo apenas que é sobre a paixão, o conhecimento
e de como a investigação científica pode ser tão
instigante como a busca de um criminoso em um romance policial. O outro
livro é sobre a importância da ciência e os problemas
das pseudociências. Por extensão, para nós da academia,
um alerta, pois cada vez mais essas pseudoverdades, baseadas em gnomos
e Ets, estão ganhando a sociedade e determinando a ação
das pessoas (será que a hidrogeologia não está
povoada dessas verdades?).
Carl Segan no início de cada capítulo
coloca frases célebres, dentro do espírito do que está
escrito no que se segue. Achei interessante transcrever algumas aqui,
para a gente pensar sobre esses temas:
Capítulo 1: A coisa mais preciosa
Toda a nossa ciência, comparada com a realidade é primitiva
e infantil - e, no entanto, é a coisa mais preciosa que temos
(Albert Einstein 1879 - 1955)
Capítulo 4: Alienígenas
Para falar a verdade, o que me leva a acreditar que não existem
habitantes nessa esfera é que me parece que nenhum ser sensato
estaria disposto a morar aqui. Bem, nesse caso - disse Micrômegas
-, talvez os seres que a habitam não tenham juízo. (Um
alienígena para o outro, ao se aproximarem da Terra, em Micrômegas:
uma história filosófica, de Voltaire, 1752)
Capítulo 5: Simulações
e sigilo
Só confie numa testemunha quando ela fala de questões
em que não se acham envolvidos nem o seu interesse próprio,
nem as suas paixões, nem os seus preconceitos, nem o amor pelo
maravilhoso. No caso de haver esse envolvimento, requeira evidência
corroborativa em proporção exata à violação
da probabilidade provocada pelo seu testemunho. (Thomas Henry Huxley,
1825 - 95)
Capítulo 6: Alucinações
Assim como as crianças tremem e têm medo de tudo na escuridão
cega, também nós, à claridade da luz, às
vezes tememos o que não deveria inspirar mais temor do que as
coisas que aterrorizam as crianças no escuro
. (Lucrécio,
Sobre a natureza das coisas, cerca de 60 a. C)
Capítulo 8: Sobre a distinção
entre visões verdadeiras e falsas
A mente crédula [
] experimenta um grande prazer em acreditar
em coisas estranhas, e quanto mais estranhas forem, mais facilmente
serão aceitas; mas nunca leva em consideração as
coisas simples e plausíveis, pois todo mundo pode acreditar nelas.
(Samuel Butler, Characters, 1667-9)
Capítulo 9: Terapia
É um erro capital teorizar antes de ter os dados. Insensivelmente,
começa-se a distorcer os fatos para adaptá-los às
teorias, em vez de fazer com que as teorias se adaptem aos fatos. (Sherlock
Holmes, em A scandal in Bohemia, de Conon Doyle, 1891)
Capítulo 10: O dragão na
minha garagem
[A] mágica, devemos lembrar, é uma arte que requer colaboração
entre o artista e seu público. (E. M. Butler, The myth of the
magus, 1948)
Capítulo 12: A arte refinada de
detectar mentiras
A compreensão humana não é um exame desinteressado,
mas recebe infusões da vontade e dos afetos; disso se originam
ciências que podem ser chamadas "ciências conforme
a nossa vontade". Pois um homem acredita mais facilmente no que
gostaria que fosse verdade. Assim, ele rejeita coisas difíceis
pela impaciência de pesquisar; coisas sensatas, porque diminuem
a esperança; as coisas mais profundas da natureza, por superstição;
a luz da experiência, por arrogância e orgulho; coisas que
não são comumente aceitas, por deferência à
opinião do vulgo. Em suma, inúmeras são as maneiras,
e às vezes imperceptíveis, pelas quais os afetos colorem
e contaminam o entendimento. (Francis Bacon, Novum organon, 1620)
Capítulo 13: Obcecado pela realidade
Um proprietário de navios estava prestes a mandar para o mar
um navio de emigrantes. Ele sabia que o navio estava velho, e nem fora
muito bem construído; que vira muitos mares e climas, e com frequência
necessitara de reparos. Dúvidas de que possivelmente não
estivesse em condições de navegar lhe haviam sido sugeridas.
Essas dúvidas lhe oprimiam a mente e o deixavam infeliz. Ele
chegou a pensar que o navio talvez tivesse de ser totalmente examinado
e reequipado, ainda que isso lhe custasse grandes despesas. No entanto,
antes que a embarcação partisse, conseguiu superar essas
reflexões melancólicas. Disse para si mesmo que o navio
passara por muitas viagens e resistira a muitas tempestades em segurança,
que era infundado supor que não voltaria a salvo também
dessa viagem. Ele confiaria na Providência, que não podia
deixar de proteger todas essas famílias infelizes que estavam
abandonando a sua terra natal em busca de dias melhores em outro lugar.
Tiraria de sua cabeça todas as suspeitas mesquinhas sobre a honestidade
dos construtores e empreiteiros. Dessa forma, ele adquiriu uma convicção
sincera e confortável de que o seu navio era totalmente seguro
e capaz de resistir às intempéries; assistiu à
sua partida de coração leve e cheio de votos bondosos
para o sucesso dos exilados naquele que seria o seu estranho novo lar;
e embolsou o dinheiro do seguro, quando o navio afundou no meio do oceano,
sem contar histórias a ninguém.
O que devemos dizer desse homem? Sem dúvida, o seguinte: que
ele foi de fato culpado da morte desses homens. Admite-se que ele acreditava
sinceramente nas boas condições de seu navio; mas a sinceridade
de sua convicção não o ajuda de modo algum, porque
ele não tinha o direito de acreditar na evidência que estava
diante de si. Não adquirira a sua opinião conquistando-a
honestamente pela investigação paciente, mas reprimindo
as suas dúvidas
. (William K. Clifford, The ethics of belief,
1874)
Capítulo 15: O sono de Newton
[É] mais frequente que a confiança seja gerada pela ignorância
do que pelo conhecimento: são os que conhecem pouco, e não
os que conhecem muito, os que afirmam tão positivamente que este
ou aquele problema nunca será solucionado pela ciência
(Charles Darwin, introdução, The descent of man, 1871)
Capítulo 17: O casamento do ceticismo
e da admiração
Nada é maravilhoso demais para ser verdade. (Comentário
atribuído a Michael Faraday, 1791-1867)
A intuição, não testada e não comprovada,
é uma garantia insuficiente da verdade. (Bertrand Russell, Mysticism
and logic, 1929)
Capítulo 18: O vento levanta poeira
Toda vez que um selvagem segue o rastro da caça, ele emprega
uma exatidão de observação e uma acuidade de raciocínio
indutivo e dedutivo que, aplicadas a outras questões, lhe assegurariam
uma boa reputação como homem de ciência [
O]
trabalho intelectual de um bom caçador ou guerreiro supera consideravelmente
o de um inglês comum. (Thomas H. Huxley, Collected essays. Volume
II, Darwiniana: Essays)
Capítulo 21: O caminho para a
liberdade
Não devemos acreditar nos muitos que dizem que só as pessoas
livres devem ser educadas, deveríamos antes acreditar nos filósofos
que dizem que apenas as pessoas educadas são livres. (Epitético,
filósofo romano e ex-escravo, Discursos)
Capítulo 22: Viciados em significados
Nós também sabemos o quanto a verdade é muitas
vezes cruel, e nos perguntamos se a ilusão não é
mais consoladora. (Henri Poincaré, 1854-1912)
Feliz Natal para todos e um ótimo ano novo!
Nos vemos no ano que vem.
Ricardo Hirata é professor do Instituto de Geociências
da USP, pesquisador do CEPAS- IGc-USP.
Hirata escreve mensalmente nesta coluna.
e-mail: rhirata@usp.br
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