De ateu a devoto fervoroso
LOCAR POÇO NÃO é
tarefa fácil. Que o diga, o Dr. Peregrino. Sobretudo quando o
contexto geológico onde a obra será encravada, é
do tipo embasamento cristalino e, ainda por cima, fica inserida no sertão
Pernambucano: uma das áreas de menor vocação hidrogeológica
do País. E como se não bastasse, se o contratante é
um octogenário cangaceiro sobrevivente do Grupo de Lampião
e comprometido, até o último caroço de chumbo de
sua obsoleta garrucha com a devoção a Padre Cícero
Romão Batista, aí o bicho pega.
Sem conhecer o passado ideológico
e a preferência religiosa do interlocutor; consciente apenas da
inaptidão hídrica daquela área de nosso semi-árido,
a princípio Peregrino não se empolgou nem um pouco com
o telefonema. Mas seu Angélico Nó Cego tinha argumentos.
Fez-se convincente. Um amigo comum tinha-lhe falado maravilhas da competência
do Dr. Peregrino em matéria de desmoralizar os mistérios
hídricos da geologia, de forma que pagava o que fosse cobrado,
mas seu poço teria que ser - debaixo de pau e pedra que fosse
- locado pelo conceituado doutor.
Sensibilizado pelos atraentes
argumentos, nas primeiras horas do dia seguinte Peregrino pisou o aeroporto
dos Guararapes, foi a uma locadora de veículos, em seguida muniu-se
das fotos aéreas da área a ser estudada e rumou para a
Fazenda Um Quente e Dois Fervendo. Chegando lá preferiu pôr
mão à obra a dar muita trela à solicitude de seu
Angélico - ora mais festivo que de costume. Fez uma tomada das
coordenadas do terreiro da Casa Grande, e, tendo como base a Carta Topográfica
do local, extrapolou as medidas para os limites da Fazenda, montou o
"Mosaico" de fotografias, e - após mover o estereoscópio
em todas as direções sobre a "superfície tridimensional",
na medida que passeava seu detido e perscrutante olhar, observou:
- Não vejo ocorrência de
uma fissura sequer em todo o domínio da propriedade. No entanto
vou fazer uma varredura na área com o VLF.
No encalço dos passos longos, firmes
e aferidos de Peregrino, porém sem entender absolutamente nada,
o velho Angélico Nó Cego cavalgava Ciclone - seu jegue
de estimação. Somente ao pôr do sol, exaustos, voltaram
à sede da Fazenda. O doutor foi direto às fotos e na medida
que fazia o aparelho deslizar sobre o painel, avultava-se em sua fisionomia
vultuosa pelo sol causticante, um semblante de preocupação.
Ele balançava negativamente a cabeça; o fazendeiro acenava
positivamente.
- Prosseguir o estudo é pura perda de
tempo, seu Angélico. Não há água subterrânea
em sua propriedade.
- Pelo contrário, doutor, tem muita e
é da boa,
- Mas com base no quê o senhor diz isto,
se eu sou o técnico e estou afirmando que não tem?
- Quem diz não sou eu não, doutor.
Quem disse foi meu Padim Pade Ciço.
- Quem?!!!
- Isso mesmo, o meu Padim Pade Ciço,
seu conterrâneo. O maior homem que o mundo já produziu,
hoje o mais milagroso dos santos.
- E o Padre Cícero esteve aqui?
- Não foi preciso, não. Ele disse
com essas palavras, a meu falecido pai - que Deus o tenha em bom lugar
- quando em uma de suas Romarias a Juazeiro do Norte: "Meu filho,
em sua propriedade tem tanta água e de boa qualidade debaixo
do solo que dá para todos os gastos de cinco fazendas iguais
a ela".
- E o senhor acredita nisto?
- Não só acredito, dotozim, como
não admito que nenhum filho do cabrunco duvide de Meu Padim.
Se for preciso, pra defender Meu Padim, apesar da idade que tenho, sou
capaz de lutar como lutei no "Massacre de Angicos" em defesa
de nosso grupo e de Virgolino Ferreira e Maria Bonita.
Diante de tamanha convicção,
o doutor se limitou a dizer que no dia seguinte voltaria a varrer toda
a propriedade. E desta feita não só convocaria ondas de
Estações de Rádio do Velho Mundo e/ ou do Tio Sam
a aportarem em seu VLF, como iria submeter o subsolo da Fazenda Um Quente
e Dois Fervendo a um verdadeiro tratamento de choque. A propósito,
discorria professoralmente sobre a física do método da
eletroressistividada, quando seu Angélico, requerendo a presença
de seu capataz de maior confiança, determinou:
Preste bem atenção Encosto Mau:
nessa madrugada eu vou a Capital fechar o negócio do poço.
Você acompanha o doutor no que ele precisar e mande sua mulher
Mundica Buchim preparar o dicomer dele. E você, dotozim, antes
de tudo fique em boa companhia, se é que é possível
alguém está bem acompanhado ao lado de um Encosto Mau
como este, e veja bem: aponte o local do poço que amanhã
de noite eu chego com a máquina pra gente cavar esse danado.
Quando o velho Nó Cego partiu às
cinco horas da manhã, Peregrino tinha - além dos insones
olhos do dia anterior -, um infalível plano para sair daquele
constrangedora situação. Alinhavou algumas SEV,s ao redor
da Casa Grande e depois de ter a certeza de que Encosto Mau era analfabeto
de pai e mãe, disse:
- Essa mensagem que acabo de receber (exibiu
o visor do GPS), dá conta de que minha mulher está dando
entrada na maternidade. É um parto complicado - mais de 40 anos,
primeira gravidez, obra de uma inseminação artificial,
e o que é pior - quadrigêmeos. De forma que devo viajar
agora. Preste bem atenção Seu Espírito, digo, Encosto
Mau: o poço terá que ser construído exatamente
onde foi cravado o último piquete. Este mourão aqui debaixo
do juazeiro (que bela árvore, não?! Deve ser secular,
merece ser muito bem cuidada - preservada por gerações
e gerações), onde está amarrado o jegue é
o referencial. Não tem erro: aproximadamente 100m ao Norte.
No dia seguinte, divertia-se contando a esposa
a gravidez arranjada e o local indicado para o poço - uma perfuratriz
só chegaria lá se se fizesse um movimento de terra que,
entre corte e aterro, envolvesse centenas de metros cúbicos -
e o fato de o poço não ser executado exatamente no local
materializado pelo piquete era motivo mais que suficiente para justificar
sê-lo mais seco que língua de papagaio; quando o celular
soou. Exultante, seu Angélico informava que o poço estava
com 60m de profundidade, e queria saber se era mesmo necessário
ir aos 100m.
- Mas seu Angélico, se o poço
já atingiu 60m não está sendo construído
exatamente onde loquei, e aí eu não me responsabilizo
por vazão.
- Não se preocupe não, doutor,
que eu tô mesmo é muito do feliz com os 30.000 l/h que
meu poço já tá dando. Até porque a água
não é salgada.
- Quanto?!!!
- Isso mesmo, segundo o responsável pela
máquina a vazão é superior a 30.000 l/h.
- E como fizeram para instalar a sonda no local,
tão rapidamente?
- Não deu o menor trabalho: foi só
desamarrar e afastar Ciclone, arrancar o mourão e o juazeiro
pelo tronco e começar os trabalhos.
- Ah foi?! É... sendo assim pode parar
com a profundidade que está. É melhor não corrermos
o risco de a água vir a ficar eventualmente ruim.
- Então tá ótimo doutor.
Olhe, além do combinado eu vou depositar um pouquinho mais de
dinheiro em sua conta. Repito: tô muito feliz, bastante satisfeito.
Muito obrigado por tudo, doutor, e que meu Padim Pade Ciço lhe
proteja.
Depois desta, o ex-ateu convicto, Peregrino,
além de rezar um terço ao Padre Cícero antes de
partir para suas locações (cada dia mais exitosas), sempre
que pode, dá uma esticadinha ao Cariri Cearense. Lá assiste
a uma missa na Basílica de Juazeiro do Norte, faz uma visita
ao túmulo de seu Padim e sobe de joelhos a escadaria de acesso
à Serra do Horto, onde, imponente, a segunda maior estátua
do País expõe um Padre
Cícero Romão Batista de corpo inteiro.
olho: Exultante, seu Angélico informava que o poço estava
com 60m de profundidade, e queria saber se era mesmo necessário
ir aos 100m
Bernivaldo Carneiro
é geólogo / sanitarista da FUNASA/CE
e escritor (romancista, cronista e contista)
E-mail: hidrogeologia.funasa@bol.com.br
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