O tiro que saiu pela culatra

    Bastou a secretária anunciar o nome de quem o aguardava ao telefone, e um sorriso bajulador lustrou a cara-de-pau do Superintendente. Era assim, com incontida satisfação - sempre transcendendo os limites do ridículo - que ele falava com o Presidente do órgão. Em respeito ao chefe, chegava ao ponto de atender suas ligações de pé. Não lhe faltavam palavras doces e elogiosas, em que pese via de regra receber contundentes puxões de orelha. Pessoalmente!... bem, pessoalmente é que não economizava mesmo na arte dos limpa-botas. Mas era prepotente, vaidoso e em matéria de cargos públicos tinha pretensões homéricas. Aí quando o Presidente disse da programada visita na sexta-feira da semana seguinte àquela regional, e desta feita em companhia do Ministro de Estado da Saúde, o puxa-saco se derreteu. Principalmente quando soube que a permanência da dupla, comitiva e asseclas no Estado, não ficaria restrita a conversa de gabinete, a reuniões fechadas. Pretendiam visitar o principal programa público então levado a efeito por aquela Superintendência de Saúde. Mas o local deveria ser o mais próximo possível da capital. Não tinham tempo a perder e não pretendia, o Presidente, abusar da boa vontade do Ministro.

    Quando desligou o telefone, evidentemente após uma longa e melosa despedida, o ícone da chaleirice já tinha traçada na cabeça a programação da visita. No aeroporto internacional do Estado, ele se juntaria à dupla e, a bordo de um helicóptero, de lá arremeteriam direto ao local do primeiro projeto a ser visitado. No caso, uma obra do PECE - Programa Especial de Combate à Esquistossomose. In loco, concederiam uma coletiva a imprensa. Aliás, aparecer na mídia nacional era o que mais queria na vida, o adulador. Sobretudo ladeado pelo Ministro da Saúde e por seu Presidente. Em sua óptica, isto lhe bastava para se descortinar a tão almejada ascensão a cargos públicos mais e mais elevados. Vislumbrava-se, ao cabo de alguns anos, entronado no primeiro escalão, e aí... quem sabe, pilotado por conchavos políticos e boa vontade popular, não tornar-se-ia inquilino do Alvorada? Desprezava assim, a fama que tinha de ser menos carismático que bedel de escola pública. Após a coletiva visitariam os principais pontos do projeto e, ainda enquadrados nos holofotes das grandes redes televisivas do país e sempre clicados pelos flashes de toda imprensa escrita nacional, encerrariam a parte de campo visitando uma das obras em andamento do Projeto de Combate ao Barbeiro. O barbeiro ao qual aludo, é bom que se diga, nada tem a ver com mau condutor de veículo, nem tampouco com o decadente profissional de Sevilha. Trata-se, única e exclusivamente, do vetor transmissor do trypanosoma cruzi, o causador da doença de chagas.

     O encontro no aeroporto, o deslocamento ao Programa do PECE, a entrevista coletiva - fluíram conforme o programado. Um forte componente para inflar mais ainda o ego do Superintendente que pairava por sobre as cabeças e câmeras presentes. E não eram poucas. Achava-se ele mais prestigiado pela mídia que padre carismático em época de lançamento de CD. E foi exatamente no momento que se julgava mais por cima da carne seca que a coisa degringolou de vez. Credite-se tal fato a um golpe de pura falta de sorte e ao excesso de prurido de D. Patrocínia - proprietária da primeira e única residência visitada naquela programação oficial. Escolhida ao acaso, o Superintendente não esperava houvesse, no âmbito daquele projeto, uma só família que não o tivesse aderido de corpo e alma. Afinal suas estatísticas eram absolutamente cartesianas: em três anos de implantação, o programa era um sucesso: 100% de adesão. E nem um novo caso de esquistossomose. Mas como esta vida é cheia de surpresas...

     Em nada adiantou o pedido de perdão do Superintendente ante o transtorno gerado. O Ministro - internacionalmente famoso por seu "pavio curto" - exasperou-se. E aproveitando que a imprensa se ocupava de seu Fenelon (debilitado, é verdade, mas denunciando ter sido vitimado pela esquistossomose nos dois últimos anos), deixou vazar por um dos cantos de sua irascível boca: "Não questiono decência de propósito, mas que houve inépcia, imperícia de sua parte isto houve. Pois, o que fazem suas equipes de Educação em Saúde que não convenceram essa tal senhora a cag..., digo, a obrar na privada? E como fica minha credibilidade face à estatística passada por mim na coletiva? Do jeito que a imprensa é sensacionalista já está criado um escândalo que vai extrapolar os limites nacionais. Tudo bem, mas vocês não perderão por esperar". - Vocês no caso era o Presidente que já bolava uma maneira de sair ileso daquele qüiproquó e o Superintendente. Este, embora ciente de que a corda sempre arrebenta no lado mais fraco, jamais cogitava, na segunda-feira seguinte, dar de cara com seu nome na relação de baixa do DOU. Mas deu, e quem diria?: um reles e nada intencional ato da humilde D. Patrocínia, viesse destituir do graduado cargo e cassar, de uma vez por todas, a carreira pública de um homem com pretensões de galgar o pódio máximo da política brasileira! Mas veio. São os percalços, ditados por idiossincrasias inerentes ao ser humano, que a vida nos reserva. Algo que escapa ao entendimento de muitos, mas bem a peculiar a pessoas tipo D. Patrocínia.

    Tudo tivera início no exato dia que o Programa fora efetivamente entregue à comunidade. Com o firme propósito de se livrar de uma buchada de bode degustada com umas doses de pinga, que não fora bem aceita por seus intestinos, 'Seo Fenelon' procurava a chave da privada, quando tomou conhecimento da decisão da esposa. A não ser passando por sobre seu cadáver, jamais alguém poria os pés no interior daquela dependência, antes que ela fosse inaugurada por quem de direito. E em sua abalizada opinião, apenas uma pessoa merecia tamanha deferência. No caso, Fenelon Júnior, o decano de sua prole de 19 filhos: 15 vivos. Há quatro anos morando na Cidade Maravilhosa, o rapaz - que enquanto morou com a família nada queria com a voz do Brasil -, havia subido vertiginosamente no conceito da mãe, pelo emprego que ostentava: era porteiro de um condomínio da zona norte carioca. Assim sendo, ela, o esposo e os demais filhos, noras, genros e netos que continuassem fazendo suas necessidades fisiológicas no mato e se banhando no rio. Enquanto Fenelon Júnior não inaugurasse a famosa privada, eles que permanecessem fiel à velha e harmônica relação que mantinham com o Schistossoma Mansoni. Posto que nem um deles era suficientemente ilustre para ter o privilégio de se aboletar sobre aquela bacia sanitária e mandar ver antes que Fenelon Júnior o fizesse. É verdade que não era um rústico vaso de cimento (idéia copiada dos guerrilheiros colombianos e aperfeiçoada por aquele órgão governamental brasileiro), mas também não era nada suntuoso. Nada digno de acomodar, como por exemplo, o farto e metido a besta traseiro de um Hailé Seilassié para levar, à fossa seca, as excretas reais; posto que era apenas um singelo Celite.

Olho: Quem diria?: um reles e nada intencional ato da humilde D. Patrocínia, viesse destituir do graduado cargo e cassar a carreira pública de um homem com pretensões de galgar o pódio máximo da política brasileira!
Bernivaldo Carneiro é geólogo / sanitarista da FUNASA/CE e escritor (romancista, cronista e contista)
E-mail: hidrogeologia.funasa@bol.com.br

Bernivaldo Carneiro
é geólogo / sanitarista da FUNASA/CE
e escritor (romancista, cronista e contista)
E-mail: hidrogeologia.funasa@bol.com.br

Voltar Imprimir

Copyright © - Associação Brasileira de Águas Subterrâneas
Todos os direitos reservados