Um policial muito do frouxo

     No momento em que a viatura parou do outro lado da rodovia, o trabalho se encontrava em uma fase realmente interessante. A princípio o homem da lei, que a dirigia, ficou a observar lá mesmo de dentro do veículo. Mas não se conteve. A curiosidade o convidou a se juntar a outros sequazes observadores. Era detentor de um fenótipo que afastava qualquer possibilidade de ser ele, um nordestino da gema. Era, sim, nascido e criado no sul do País. Lá pros lados dos pampas, e como tal tinha pele muito alva (então meio queimada pelo abrasador sol cearense), olhos azuis e avantajada estatura. Talvez face à profusão de músculos - visivelmente malhados - possuía um jeitão másculo. Enfim, parecia ser um policial na melhor acepção do termo.

     Em passo à desfile militar, ele atravessou a estrada, apoiou a mão esquerda na cartucheira arqueada pelo peso da munição, deixou a direita cair à altura do trabuco que roçava a coxa do lado oposto, e se pôs embevecido. Seu companheiro naquela missão, este sim, de físico e cor condizentes com nosso povo, apeou-se, equilibrou-se sobre o meio-fio que separava o carro da cerca de arame farpado delimitante da faixa de domínio da rodovia, debruçou-se parcialmente sobre a porta entreaberta da sucateada D-20 cor de jerimum caboclo, e ficou a observar o trabalho por sobre o capô. O preso, por seu turno, algemado em dois bujões de gás de cozinha e sentado no empoeirado lastro do carro, depois de limitados, porém insistentes movimentos de um lado para outro, finalmente encontrou um melhor ângulo, para, de quando em vez, também exercitar seu lado indiscreto. Mas o fazia comedidamente, meio de soslaio. Dava uma olhadela rápida no principal cenário ao derredor, voltava-se para dentro do carro e deixava o olhar cair no piso da carroceria. Através do qual podia ver o eixo traseiro, parte da transmissão e o pequeno córrego formado pela corrente de água, proveniente do poço em construção, que corria tangenciando o meio-fio e lavando a pedra tosca: o revestimento da estrada. Nestas condições o rapaz extrojetava um semblante que oscilava entre o arrependimento e a revolta. Era notório seu constrangimento com aquela situação. É verdade que havia "feito mal" a uma moça, mas mesmo sendo a criatura de menor - pelo menos em seu juízo crítico -, não era motivo para ser submetido a tamanha humilhação. Afinal se dispusera a casar, no entanto o raivoso fazendeiro pai da jovem, aspirava a alguém melhor situado na vida para abençoar como genro.

     Mas de volta ao chefe da diligência policial, ressalte-se: chegou a tempo de observar a perfuração da metade restante da haste que levou o poço aos 150m de profundidade. E o fez como quem tinha a incumbência de monitorar a taxa de penetração. Acompanhou, sem pestanejar, a velocidade do cabeçote rotativo se aproximando do mordente inferior. Velocidade esta, relativamente baixa, a despeito da alta potência do compressor. É que a boa produção do poço, segurava em parte o avanço da perfuração. Mas mesmo assim a admiração do PM era notória e cresceu muito quando o cuidadoso operador inverteu o curso da composição. Eu disse, cuidadoso!? A bem da verdade, o operador (no caso Narciso Bacco Fortuna Pavão) estava mesmo era mais para exibido do que para cuidadoso. Havendo platéia ele não economizava no teatro, esmerava-se na performance. E no caso, como se via cercado de espectadores, radicalizou. Aos gritos e com toda a carga cênica que lhe era peculiar em seus freqüentes momentos de extrema exibição, distribuiu comandos verbais e hidráulicos. Os primeiros - compostos por expressões essencialmente técnicas, tinham como endereço seus auxiliares; estes - o equipamento. Nem de longe parecia um perfurador ou, como queiram, um operador de sonda no desempenho da função, mas sim, um astro global interpretando um melodrama para "a deusa platinada". E foi com toda esta dramaticidade, que a pretexto de limpar ou retificar o último trecho perfurado, Narciso acionou o pull back rápido. O cabeçote se aproximando do final da torre, e a água jorrando em crescente volume, tornando-se mais e mais cristalina, foi um colírio para os olhos do "milico". Aí, também atraído pelo teatro de Narciso, ficou dividido entre a nuvem de água proveniente do interior da terra e o painel de comando da máquina. Observou boquiaberto cada passo do operador. A manobra do pull down - de propósito, o lento para agregar mais expectativa -, a total restrição de ar na composição, o acionamento do mordente inferior, o desenroscar e o bascular do cabeçote e, por fim, o acoplamento de uma nova haste. Mas o homem da lei babou mesmo foi ao ver aqueles 6,00m de comprimento por 4 ½" de diâmetro de retesado aço, sendo vigorosamente alçada de uma situação de repouso, à horizontal; para em seguida, descrevendo uma inclinada trajetória ascendente, finalmente assumir a posição vertical e ser acoplada à composição para dar continuidade ao furo. De forma que, se o policial relacionou aquela cena com o motivo pelo qual conduzia um cidadão preso, nunca se soube. De sua boca saiu apenas a exclamação: "Nossssaaaa...! Que potênciiiia!", articulada com a língua entre os dentes quando os olhos - brilhantes e em acelerada rotação horária - voltavam-se rapidamente para o carro e, por mera coincidência, encontraram o olhar do preso.

     Era um poço misto de admirável produtividade para o condicionamento hidrogeológico regional; posto que - associada à boa vazão -, apresentava recuperação rápida, nível estático muito próximo à superfície e câmara de bombeamento em 8" até os 70m. O restante, encravado no embasamento cristalino, tinha sido perfurado com diâmetro de 6". De sorte que o volume de água, acumulado entre uma manobra e outra de haste, era bastante significativo. Assim sendo, encontrando-se como se encontrava a descarga de ar no fundo do poço, fazia-se necessário muita pressão e um grande volume de ar para deslocar a massa líquida até desaguar em superfície. E isto demandava tempo. Tempo suficiente para o militar ficar completamente absorto aguardando o que admiraria em seguida. Foi aí que o acoplamento da mangueira de condução de ar, do compressor à perfuratriz, não resistiu à estratosférica pressurização. O barulho foi ensurdecedor. Ouviu-se sibilantes ruídos e viu-se galhos - não somente os mais tênues, mas também alguns de maior calibre - da vizinha plantação de cajueiro, sendo decepados pelas frações das estilhaçadas abraçadeira e luva de união. Seguiu-se a tudo aquilo, a evolução da mangueira, à serpente enfurecida, golpeando o chão, e o indigesto dragão, cuspindo ar em profusão e levantando solo e poeira. Por este tempo, um grito de pavor atraiu a atenção de todos os presentes. O policial chacoalhava o corpo e pisoteava convulsamente o chão. Segundos depois, movido por suspeitos trejeitos e pedindo socorro, saiu em disparada. Ao pisar o outro lado da rodovia escorregou na lama, o revólver também caiu, chocou-se contra o meio-fio e disparou. Mais apavorado ainda, o PM se projetou por sobre a cerca de arame farpado... nela deixou boa parte de sua humilhada farda e se embrenhou nas capoeiras correndo em zigue-zague e gritando: "Mãeinha me acuda, mãeinha me acuda, mãeinha me acuda...".

     Olho: Acompanhou, sem pestanejar, a velocidade do cabeçote rotativo se aproximando do mordente inferior

Bernivaldo Carneiro é geólogo
/ sanitarista da FUNASA/CE e
escritor (romancista, cronista e contista)
E-mail: hidrogeologia.funasa@bol.com.br

 
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