Septuagenário, sim, mas assanhado

     Ele deixava a obra antes do escurecer. Meia hora depois estava de volta ao quarto da modesta pousada que a prefeitura o franqueara. Despia-se da roupa do dia e vestia a da noite. Não tanto por desleixo com o asseio pessoal, mas antes de tudo face ao racionamento d'água, quando muito, tomava um banho dia sim, dia não. E era exatamente a propósito de resolver o angustiante problema hídrico, que Faustino Venturoso se encontrava naquele município. Era aquela adutora, sua primeira "responsabilidade técnica" na iniciativa privada. Emprego que ele, de si para si, atribuía a dois importantes fatos: não ter dificultado as coisas para a construtora, a serviço da qual se encontrava, quando ela prestara serviço à repartição de que era aposentado, e, antes de tudo, por ser um excelente engenheiro. Qual dos dois méritos mais pesou na decisão do empregador, não se sabe. Sabe-se, contudo, que Venturoso não teve dificuldade para conseguir aquele complemento salarial quando foi jubilado pela compulsória. Pois bem, trocava de roupa, metia os pés nos chinelos de rabicho, passava o pente no que lhe restava dos tingidos cabelos, pegava o rádio e se dirigia à Praça da Matriz. Muito embora tivesse a pretensão de ser portátil, o rádio parecia mais uma mudança. Ocupava-lhe as duas mãos para mantê-lo colado a um dos ouvidos. Era um aparelho realmente imponente. De forma que a freqüência com a qual mudava do lado esquerdo para o direito e deste para o anterior, diminuía com o tempo. Afinal de contas pesavam sobre as costas de Faustino mais de setenta anos, e o rádio... Bom o rádio, além de grande também era muito pesado. Setentão, sim, mas ainda cultivando uma das características que - a menos que uma anomalia vocal se instale - nós homens nos livramos dela ainda na adolescência. E este pormenor assumia especial acento quando os nervos lhe saltavam à flor da pele. Quando discutia com alguém. E em seu dia a dia era comum as discussões acaloradas. Ninguém mais que Venturoso defendia uma idéia com tanta garra. Para ele, um ponto de vista seu era o mais fiel atestado de bom senso e lucidez. Defendi-os à exaustão. Às últimas conseqüências. E nestes momentos, a aludida característica se acentuava sobremodo. A voz, como que indecisa entre o pai e a mãe, saltava abruptamente do tenor ao soprano. Aos solavancos, o grave dava lugar ao agudo e este, de súbito, inflexionava para o mais fino dos tons vocais. E assim Venturoso seguia defendendo suas idéias. Tocando, além de obras, a vida. Por vezes com o rádio em punho grudado no ouvido. Não podia era retornar para casa totalmente à margem dos acontecimentos.

     Em dadas ocasiões havia incorrido em tal erro e tivera problemas. Amargara apuros. Pois, não obstante já percutindo à porta das bodas de ouro, a esposa continuava, mais do que nunca, ciumenta. Retornar de viagem sem ter na ponta da língua - por mais irrelevantes que fossem - os últimos acontecimentos; era motivo suficiente para a esposa chegar às mais estapafúrdias deduções... Sabedora do quanto ele era ligado nos noticiários em geral, retornar alheio aos ocorridos políticos, aos fatos históricos significava ter mergulhado na farra durante as noites viajadas.

     Mas como a pousada não possuía aparelho de tevê - em preto e branco que fosse - não tinha como ver os noticiários televisivos, como assistir às novelas. E como na cidade não circulava jornais, a saída para não contrariar a consorte e, por conseguinte, poupar os próprios ouvidos de interminável latomia, era ouvir diariamente "A Voz do Brasil". Aí, arrastando os chinelos de rabicho, a camisa vinho de malha por fora da bermuda cinza de fundo longo e frouxo caindo à altura da curva dos joelhos (ao seu ver, uma combinação básica), ao mesmo tempo que Venturoso se inteirava dos últimos acontecimentos nacionais, das deliberações do Planalto Central; fazia a caminhada noturna. Mas em nenhum momento, nada do que ocorria à volta, passava-lhe desapercebido. Eram os informes entrando por um dos ouvidos e os olhos bisbilhotando o entorno. Não sobrava uma só freqüentadora da praça da matriz que não merecesse pelo menos um "psiu". E a cada "psiu", seu único dente superior (um inciso direito), que de tão solto balançava ao sabor do vento, inclinava-se para fora da boca. Atribuía-se o ainda habitar daquele "herói da resistência" na boca murcha de Venturoso a um mero cochilo da lei da gravidade.

     O não cuidar da boca, isto sim: desleixo total. Algo que muito mexia com as línguas-viperinas. - "Como é que pode!... com dois bons profissionais dentistas na família e o Venturoso deixa a boca chegar àquelas condições!...". Que ele tinha dois bons "Profissionais do boticão" a seu inteiro dispor, era a mais absoluta verdade: um genro e um neto. Mas, e daí, se Venturoso não dava mesmo a menor bola para cuidar de seu sorriso?! Enfim: em paz com a banguelice, lançava-se à batalha sem o menor constrangimento e de quando em vez lograva êxito como no caso em tela.

     Foi com o rádio colado a um dos ouvidos, arrastando os chinelos de rabicho, balançando o longo e frouxo fundo da bermuda cinza, e dirigindo "psius" sem se dar conta do risco que corria de perder sua maior relíquia (no caso, o solitário inciso), que ele conheceu Glorinha dos Navegantes. Conversa vai, conversa vem, chegaram a bons termos. Ela escancarou o próprio passado. Confiou toda sua vida ao engenheiro. Digo: quase toda, posto que omitiu importante detalhe: - "Tinha ficado viúva aos três anos de casada quando contabilizava dezenove anos de idade. O finado deixara-a com dois filhos no colo e um no ventre...". - Falou das dificuldades que enfrentava para criar aquela escadinha de três degraus: quatro, três e dois anos. Discorreu sobre outras passagens de sua vida, e pediu segredo na relação que ora estabeleciam. Principalmente discrição nas visitas à sua casa, que - a partir daquela noite - Tino, como lhe apeteceu chamá-lo, passaria a fazê-la. Ele poderia bater à porta (somente a dos fundos, ressalte-se) por volta da meia-noite. Por aquelas horas, os filhos há tempo nas respectivas tipóias, dormiam o sono dos anjos, e os vizinhos, a exemplo de praticamente toda a cidade, já haviam se recolhido. E antes da noite dar sinais de esmaecimento, Venturoso tinha que dizer bye-bye. Ou melhor: "Bom dia Pituquinha" - era assim que ele se despedia da amante com um abraço e dois beijos na testa, ao quebrar da barra.

     Glorinha omitiu apenas, talvez de propósito, para não inviabilizar a relação que nascia e parecia ter tudo para prosperar, o que rolava entre ela e o paraibano. Um caminhoneiro casca-grossa que, em passando pela região, não dispensava as carícias da viúva. Pernoitava na casa dela e, com natural empenho, reeditava os melhores momentos que Glorinha guardava na lembrança, da época que o marido era vivo... Como era praxe, naquela noite Venturoso manteve seu decantado conservadorismo: da indumentária à paquera, do rádio à "Voz do Brasil". Em seguida voltou à pousada. Jantou. Saboreou a sobremesa: não dispensava uma bem posta tigela de doce-de-leite após as principais refeições. Ali mesmo, refestelado na cadeira à mesa do restaurante, pôs-se a cochilar. O alarme do relógio de algibeira o despertou às 23h45. Esfregou os olhos, passou a camisa na face esquerda para se limpar da baba que escorria queixo abaixo, desentorpeceu as pernas, espreguiçou-se e foi em frente. Embora a visse pela primeira vez, a carreta estacionada no terreno baldio ao oitão da casa de Glorinha não lhe disse absolutamente nada. Todo surpreso ficou por conta do atendimento aos seus discretos toques com os nós dos dedos na porta. Mais precisamente quando um homem de tórax desnudo e volumoso o suficiente para preencher todo o vão da folha superior da porta, indagou com ríspida e grossa voz:

     - O que é que o senhor quer?

     Por sorte, àquela altura dos acontecimentos, havia dois dias, a adutora encontrava-se em teste. Aí, com o coração mais acelerado que o de político corrupto depondo em CPI, Faustino Venturoso - homem de raciocínio rápido, porém com a voz mais do que nunca à mãe -, perguntou de volta:

      - Tá chegando água aqui?

Bernivaldo Carneiro é geólogo
/ sanitarista da FUNASA/CE e
escritor (romancista, cronista e contista)
E-mail: hidrogeologia.funasa@bol.com.br

 
Voltar Imprimir

Copyright © - Associação Brasileira de Águas Subterrâneas
Todos os direitos reservados