A ameaça dos mortos

A contaminação de água subterrânea por necrochorume capa do ABAS INFORMA edição 111, de fevereiro de 2001, foi recentemente tema de matéria publicada no jornal A Folha de São Paulo.
O assunto polêmico divide opiniões sobre a problemática em
cemitérios da cidade de São Paulo. Acompanhe:

...Líquido de corpos em decomposição
nos cemitérios pode
contaminar a água

     Cada vez mais se reconhece a importância do meio ambiente, a necessidade de não se desperdiçar água e de preservar a natureza. Porém, nessa onda alguns pontos passam batidos. Um deles, apesar de mórbido, refere-se à poluição que os cemitérios podem causar. Poucos imaginam, mas os mortos são capazes de se tornar perigosos poluentes. É que o processo de decomposição de um corpo, que ao todo leva em média dois anos e meio, dá origem a um líquido chamado necrochorume. Este composto é eliminado durante o primeiro ano após o sepultamento. Trata-se de um escoamento viscoso, com a coloração acinzentada que com a chuva pode atingir o aqüífero freático, ou seja, a água subterrânea de pequena profundidade. O geólogo e professor da Universidade São Judas Tadeu, de São Paulo, Lezíro Marques Silva, que há quase 30 anos dedica-se a pesquisas sobre o tema, verificou a situação em 600 cemitérios do País e constatou que cerca de 75% deles poluem o meio ambiente. Ora por não tomarem o devido cuidado com o sepultamento dos cadáveres, ora pela localização em terrenos inapropriados. Ele aponta, por exemplo, o limite de dois metros acima do lençol freático para o sepultamento de um morto. O necrochorume é formado por 60% de água, 30% de sais minerais e 10% de substâncias orgânicas, duas delas altamente tóxicas: a putresina e a cadaverina. “Em São Paulo há vetores transmissores da poliomielite e da hepatite e as pessoas que não têm acesso à rede pública de abastecimento e utilizam poços é que são afetadas. Se em São Paulo a situação já é grave, imagine nos cantões do país?”, questiona o professor.

      Terra de ninguém - Mesmo diante dos riscos, não há legislação específica e nem mesmo um órgão destinado a fiscalizar eventuais contaminações. Até mesmo a literatura voltada ao tema é escassa. Dessa forma, fica a cargo de cada município resolver suas pendengas. O professor Alberto Pacheco, do departamento de Geociências da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Centro de Pesquisas das Águas Subterrâneas (Cepas), alerta que as áreas municipais são aquelas que mais apresentam problemas e é categórico: “Todo cemitério é um risco potencial para o meio ambiente, mas só é um risco efetivo quando não estão implantados adequadamente. Para isso, é preciso avaliar as condições básicas geológicas (tipo de solo) e hidrogeológicas (profundidade no nível do aqüífero freático). E as prefeituras, geralmente, utilizam terrenos com valores depreciados e não se atêm a qualquer tipo de iniciativa”. Pacheco ainda conta que a Cetesb tem uma norma técnica voltada ao assunto, que traz um conjunto de procedimentos para a instalação segura de um cemitério. Porém, o órgão alega que não faz parte de suas atribuições fiscalizar o cumprimento da norma.

     Enquanto isso, aumentam-se os riscos na saúde pública. Desde o final da década de 80, o professor Pacheco tem realizado estudos de investigação nos cemitérios de Vila Nova Cachoeirinha e de Vila Formosa e nesse trabalho foi verificado a contaminação da água por microrganismos (bactérias e vírus). Atualmente, está sendo desenvolvido um estudo para verificar quais são os microrganismos patogênicos. “Todos os trabalhos executados pela universidade têm como principal objetivo mostrar a realidade e chamar atenção de órgãos ambientais e sanitários para os riscos existentes. Os problemas devem ser equacionados para garantir a qualidade de vida aos cidadãos”, resume o pesquisador.

      Sepultamento de qualidade - Há dois anos, um cidadão comum denunciou ao Ministério Público de Curitiba a existência de um líquido que saía do cemitério e avançava às margens de um rio local. Foram realizadas uma série de análises técnicas nesse local, mas nenhum estudo foi suficiente para comprovar que se tratava de uma fonte poluidora. A dificuldade foi decorrente a inexistência de uma lei correspondente aos lençóis freáticos. Segundo o coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias do Meio Ambiente de Curitiba, Saint Claire Honorato Santos, a partir desse episódio foi solicitado que todos os cemitérios apresentassem análises básicas. E isso só foi possível porque a promotoria entendeu que a água subterrânea estaria incluída na classe especial da resolução federal do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). Essa classificação garante que nenhuma forma de poluição seja aceita. Também foi utilizada uma portaria do Ministério da Saúde sobre portabilidade de água. “Tentamos achar uma solução para que pudéssemos ter alguma base legal para exigir as análises”, explica o coordenador.

      Apesar dos esforços, os resultados não foram satisfatórios, pois devido a complexidade do assunto não há nem mesmo um senso comum de métodos para classificar o impacto ambiental dos cemitérios. Então, foi feito um convênio com os departamentos de geologia e de química da Universidade Federal do Paraná para estabelecer de forma mais técnica e concreta tal avaliação. Diante dessas novas exigências, alguns cemitérios em Curitiba passaram a se preocupar com a questão. É o caso do Cemitério Parque São Pedro, inaugurado em 1996 totalmente de acordo com as normas ambientais. Ali, foram realizados estudos e obras que conduzem o necrochorume para um filtro biológico, impedindo assim qualquer tipo de contaminação. O cemitério recebeu certificação ISO 14001 e se tornou referência atendendo a proposta do Estudo Impacto Ambiental - Relatório de Impacto ao Meio Ambiente (EIA/RIMA). Segundo diretor de Marketing do cemitério, Ronaldo Vanzo, o principal objetivo é oferecer um serviço ambientalmente seguro sem interferir no lençol freático. Mas ainda são poucos os bons exemplos e a omissão diante do assunto é uma constante.

Shell contamina águas subterrâneas em São Paulo

Reportagem do jornal A Folha de São Paulo denuncia contaminação pela Shell de uma área equivalente a 25 campos de futebol

     A repórter Mariana Viveiros, do jornal A Folha de São Paulo apresentou uma série de matérias investigativas envolvendo a empresa Shell na contaminação de águas subterrâneas, na Grande São Paulo. De acordo com a reportagem, uma área de pelo menos 180 mil m2 na Vila Carioca (o equivalente a 25 campos de futebol), na zona sul de SP, onde a Shell já teve uma fábrica de pesticidas e mantém há cerca de 50 anos uma unidade para armazenamento de combustíveis, está com o subsolo e as águas subterrâneas contaminados por uma série de substâncias tóxicas -muitas delas cancerígenas. A contaminação é alvo de uma ação civil pública proposta pela Promotoria de Meio Ambiente da Capital, na qual são réus a Shell e a Cetesb (agência do governo paulista responsável pela fiscalização e pelo controle ambiental). A estimativa da Promotoria é que até 30 mil pessoas possam ter sido ou vir a ser afetadas num raio de 1 km a partir da unidade da Shell.

     A gerência da Cetesb para a Bacia do Alto Tietê confirmou, conforme a reportagem, que foi constatada em março a contaminação das águas subterrâneas da região por benzeno, tolueno, xileno, etilbenzeno, chumbo e outros metais pesados, todos eles substâncias tóxicas, com propriedades cancerígenas e que causam danos à saúde mesmo em concentrações baixas. A Cetesb avalia agora a dimensão do comprometimento para poder determinar medidas. Por conta da contaminação, a Shell foi multada em cerca de R$ 105,2 mil. Segundo o DAEE (Departamento de Águas e Energia Elétrica), há apenas um poço artesiano regularizado na região e outro em fase de análise. O órgão não descarta, porém, a existência de poços clandestinos, que não passaram por nenhuma pré-avaliação oficial da qualidade da água.

     Representantes da Shell admitiram que as concentrações de drins (pesticidas tóxicos) no solo de parte da área contaminada pela empresa na Vila Carioca (zona sul de SP) chegam a ser até mais de 2.450 vezes superiores a parâmetros internacionais. No caso do aldrin, por exemplo, a quantidade registrada está 1.320 vezes acima do limite máximo estabelecido pela Cetesb para áreas industriais no Estado. A exposição aos drins já foi relacionada a disfunções de aprendizado e interrupção dos sistemas nervoso central e hormonal, com preocupação particular em relação a crianças e fetos. No local, chegaram a ser retiradas amostras que tinham 6.600 miligramas de aldrin por quilo de solo seco. O valor de intervenção -que indica um nível de comprometimento do solo acima do qual há riscos para a saúde e para o ambiente- é de 5 mg/kg, segundo o Relatório de Estabelecimento de Valores Orientadores para Solos e Águas Subterrâneas, publicado em 2001 pela Cetesb. O isodrin foi encontrado numa concentração ainda mais expressiva: 9.800 mg/kg de amostra seca. Embora a Cetesb não tenha parâmetro específico para o produto, a Agência Ambiental da União Européia estabelece o limite de intervenção para o total de drins em 4 mg/kg de matéria seca. O padrão é adotado na Holanda, país de origem da Shell. Até então, a empresa não admitia que fosse responsável pela contaminação, apesar de ser a única a produzir drins no mundo.

     Tudo começou quando laudo do IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológicas) apontou a concentração de 220 mg de chumbo por quilo de solo na área onde são armazenados os combustíveis. Segundo o Centro de Vigilância Epidemiológica da Secretaria de Estado da Saúde, o chumbo existe na crosta terrestre em concentrações de aproximadamente 13 mg/ kg. A OMS aceita a ingestão semanal de 25 mg/kg da substância. A contaminação pode causar dores de cabeça, abdominal e nas articulações, fadiga, sonolência e irritabilidade. Crianças e fetos podem ter danos cerebrais. A presença do chumbo (que já foi usado como aditivo na gasolina) no local se deve ao fato de a Shell ter, por cerca de 40 anos, enterrado no solo, sem nenhuma proteção, borras de combustível que ficavam nos tanques de armazenamento após sua limpeza. Daí a existência ainda do benzeno e de seus derivados, produtos do refino do petróleo, e de metais pesados, presentes no óleo bruto. Durante o processo de avaliação da contaminação, as empresas contratadas pela Shell para fazer o estudo identificaram também altas concentrações de pesticidas como aldrin, dieldrin e isodrin, que intoxicam o sistema neurológico. A remoção do solo com essas substâncias é recente.

 

Voltar Imprimir

Copyright © - Associação Brasileira de Águas Subterrâneas
Todos os direitos reservados