Um silvícola no mínimo malandro

       Há dois anos comandando – ora de perto, ora à distância – trabalhos em aldeias, eu me julgava conhecedor das idiossincrasias indígenas. Especialmente versado nas etnias Guajajara e Kanela, muito embora silvícola me soasse tudo igual. Logo nos primeiros contatos, algo que ainda hoje me tinge as faces, saltou-me aos olhos: à luz de seus entendimentos os índios só tinham direitos. Os deveres? Por conveniência, passavam ao largo da capacidade intelectual de entender e absorver informações. Além do que, com o devido respeito aos primitivos habitantes da “terra brasilis” – queiramos ou não, um dos tentáculos de nossas raízes – constatei também que por índole eram invariavelmente temperamentais e traiçoeiros. Espero não me tomem por sensacionalista: o que aqui é dito são apenas revelações de quem experimentou na pele tais oscilações de humor. Desabafo de quem amargou contratempos, sofreu humilhações. Percalços que foram da detenção de equipamentos à prisão de pessoas. É que eles se acham no direito de não ter o dever de reconhecer nosso líqüido e certo direito de ir e vir e ficar. O jeitão indígena de ser também me revelou o quão são desconfiados e introspectivos. De tal ordem fechados em si que estão sempre refratários a qualquer tipo de colaboração. Por vezes precisei de informações e nada colhi, necessitei testemunho e nada arranquei. Quando o assunto não lhes interessa, ou emudecem completamente, ou bodejam seus dialetos e nos deixam na mesma. De raro em raro, falam; porém nada dizem. Mesmo depois de uma convivência com fulcro na qual os mais desconfiados e gélidos dos povos, tornar-se-iam desatadamente solidários, escancaradamente cúmplices. Um bom exemplo disto foi quando busquei versões neutras para um inédito incidente. Ocorrera que, sabe lá Deus por que cargas d’água, dois colegas de uma das equipes haviam decidido zerar suas diferenças nos tapas. E o fizeram sob o introspectivo olhar de dezenas de nativos. Aí, mesmo ciente do pesado clima vivido por eles – imposto que era pelos próprios índios – não me ficava bem fazer vista grossa diante de tão radical acerto de contas. No entanto a indiferença das testemunhas oculares naufragaram minha incipiente carreira de araponga. Restando-me como consolo, esta conclusão: se é que os inocentes dizem sempre o que queremos saber, estes silvícolas nada têm de inocentes. A despeito desta constatação, eu jamais imaginaria pudesse aquela gente abortar um sujeito com um plasma tão rico em matreirice. Ele se apresentou à nossa equipe no domingo que antecedeu ao início dos trabalhos em sua aldeia. E o fez tão logo se apeara do palco onde cumprira aplaudidíssima performance. Refiro-me ao show através do qual se devolvia triunfantemente à sua comunidade após mais de dois meses de ausência. Vinha de uma temporada de shows pelo Estado do Maranhão, Leste do Pará e Norte de Tocantins, divulgando entre os parentes, seu terceiro CD.

      Trazia no rosto um sorriso cínico, nas mãos uma relação com cinco nomes. Encabeçava-a, um tal de Alcebíades Karaí Guajarara. O Karaí no caso era, ninguém mais ninguém menos que a peça que nos falava. Foi enfático ao afirmar ser a lista a mais legítima expressão da vontade da aldeia. A qual, por pura coincidência, tinha em sua pessoa o Cacique. Embora surpreso com a inovação (até então tivera total liberdade para selecionar seus auxiliares), o pleito foi prontamente acatado. A experiência e o bom senso de mãos dadas com sua frouxidão haviam ensinado ao chefe da equipe, no caso o sempre sobressaltado Olavo Palestra –, não ser conveniente contrariar a sagrada vontade indígena. Principalmente quando a reivindicação era fruto de uma decisão coletiva com chancela do cacique. Aí, nem com a bênção de Padre Velho, deveria ser desobedecida.

      Logo nos primeiros dias Karaí mostrou ao que viera. Espelhava a cara de pau e avalizava as ações, ser afeito às atividades mais leves. Dado aos serviços maneiros. Digamos: compatíveis com seu jeito maneiroso. Pegar hastes, bater bentonita, carregar e descarregar caminhão... Não, isto não. Suas disposição e habilidades eram mais nobres. O máximo que fazia era repousar uma pá na saída do furo, e, manemolentemente, aguardar que sobre ela se precipitarem as amostras de calha. No entanto era observador. Seu queixo pendia ao rés do chão quando ouvia as freqüentes conferências do amedrontado, porém sempre exibido e boquirroto Olavo Palestra. Decorrência natural desta aplicação, toda a terminologia técnica do trabalho se incorporou a seu vocabulário. Passou a transitar com a mais absoluta desenvoltura pelos diferentes setores do trabalho. Os mais leves e mais qualificados, diga-se. Logo deu claros sinais de que dominava com maestria os princípios do trabalho, as funções e o funcionamento dos equipamentos. Aí ousou nos pitacos, criou gosto em opinar.

      – Brother, acabo de fazer uma tomada dos parâmetro físico-químico do fluido de perfuração: a viscosidade, a densidade e o teor de areia tão baixo. Como o nível da lama no circuito tá descendo (deve tá sendo perfurado um bom aqüífero), vou mandar adicionar água e bater bentonita. Antes, porém, recomenda a boa técnica neutralizar o pH? Cadê a soda cáustica? Onde está a barrilha?...

      Antes que o Brother – no caso o frouxo Olavo Palestra – remetesse-o a Afonso Sorvino, Karí se voltava para um dos operários – tal como ele contratado para pegar pesado – e determinava coisa do gênero:

      – Limpe o funil Mash, a balança, o Becker, a pipeta e as outras peças do laboratório e guarde eles em seu lugar...

      Foi por estas e outras intromissões que Sorvino passou a torcer o nariz para o folgado popstar. No entanto, o que o arremessou mesmo para fora das quatro linhas foram as opiniões que deixou vazar quando da elaboração do projeto final do poço. Causa da insone noite de Sorvino, que se seguiu àquela etapa dos trabalhos. “Até admirava o fato de em apenas uma perfilagem, Karaí ter ficado sabendo a fundo que raios significavam potencial espontâneo, resistência elétrica, raio gama... Era digno de elogio, o visceral empenho com que o cantor se entregara ao evoluir de cada linha traçada pelo analógico aparelho do Professor, na medida que a sonda era içada à superfície. Também merecia aplauso, a habilidade com que Karaí fez do Dr. Geofísico seu refém enquanto não se julgou apto a interpretar as saliências e reentrâncias dos gráficos gerados. O que para ele, Sorvino, além de lembrar o último eletrocardiograma da falecida mãe, nada mais significava. Bom, até aí tudo bem, mas ter a petulância de sugerir a posição, a abertura, a metragem de filtros no projeto final do poço!... Não, isto era demais. Tinha ralado duro para conquistar a função de segunda pessoa na hierarquia operacional da equipe e não ia perdê-la exatamente para um malandro qualquer com pendores de cantor meia-tigela...”

      Na manhã seguinte, com o aval de Palestra, Sorvino chamou Karaí a um particular:

      – A partir de hoje só arredaremos o pé da obra quando o poço estiver em condições de ser entregue à equipe de desenvolvimento/ limpeza e teste de produção. Você será nosso cozinheiro. Comece fazendo um suculento baião-de-dois para o almoço de hoje. Tome aqui: dois quilos de feijão, dois de arroz, um quilo de queijo e outro de toucinho.

      Delegou a missão e se entregou ao trabalho que de direito era seu. De lá só se afastou meio dia. Um recorrente pressentimento lhe dizia ser necessário fazer uma inspeção à cozinha.

     – Eu acho que você esqueceu o queijo e o toucinho, Karaí?
     – Não! Como é que eu ia esquecer logo o tempero!
     – Mas aqui não tem o menor vestígio de queijo nem tampouco de toucinho!...

      Aí, sem maiores esforços – o Astro que três semanas antes não detinha nenhum rudimento na matéria de Marie Curie – se saiu com esta pérola:

     – Então de duas uma: ou se processou uma reação química homogênea ou o queijo e o toucinho se precipitou. Não creio que tenha evaporado...

     Sorvino até que se esforçou para digerir a laboratorial explicação. No entanto o quase imperceptível sabor de queijo e toucinho do baião-de-dois inchava-lhe na boca e por fim encalhou na garganta. Aí, traído pela sorte, Karaí foi apanhado no contrapé da sesta e a farsa foi desmascarada. Uma sacola identificada pelo nome do proprietário e a marca da Funai, largada entre sacos vazios de bentonita, revelou todo o mistério. O queijo e o toucinho – praticamente intactos –, que ela acomodava à sua revelia, aguardavam o momento oportuno para incrementarem em volume e tornarem mais palatáveis as refeições da primeira dama da aldeia e de seus rebentos.

Bernivaldo Carneiro é geólogo
/ sanitarista da FUNASA/CE e
escritor (romancista, cronista e contista)
E-mail: hidrogeologia.funasa@bol.com.br

 
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