Desculpa esfarrapada

Não foi preciso Sepúlveda se identificar. Apesar de uma década sem ouvi-lo, para Menescal a voz do amigo por si só dizia tudo. E articulando a exclamação Grande Menesca!, não tinha erro.

– Mas que agradável coincidência, Seveda!
– Coincidência! Que coincidência, Menesca?!
– Não consegui dormir esta noite recordando nosso tempo.
– Que beleza de época!
– Eu que o diga, quero dizer, nós...

Nada de exagero nem hipocrisia. Realmente naquela noite Menescal aguardava ser dominado pelo sono, e de repente se entregou às recordações da boa vida que levara desde o brotar da adolescência até os 30 anos de idade. Período que se iniciara com o estudo do segundo grau, atravessara todo o curso de Engenharia Civil e se estendera por mais seis inesquecíveis anos. Sempre na agradável companhia de Sepúlveda.

Bem-nascido, bom de copo e excelente papo, Sepúlveda sempre fizera o gênero admirado pelas mulheres. Era um bon vivant na melhor acepção deste galicismo. E como se não bastasse trazer do berço o tipo que caía bastante bem no gosto feminino, sempre que possível, incrementava-o. Menescal, no entanto, no físico e tão somente no físico, deixava a desejar. Baixinho e entroncado, bochechudo, lábios grossos, nariz achatado, cabelo pixaim, sem pescoço – ao contrário de Sepúlveda – drasticamente castigado pela natureza. No entanto, na lábia e no gosto pela boêmia, tal qual o outro, era perfeito. Aí foi só se cruzarem nos corredores do colégio, e nasceu uma dupla imbatível na arte do bom viver. Claro que Menescal levava uma ligeira vantagem na parceria: na avalanche de mulheres que se precipitavam de quatro aos pés de Sepúlveda, sempre lhe sobrava uma ou outra. Nas rodas de bebedeiras, festinhas e orgias, Sepúlveda tirava o som do instrumento e Menescal soltava a voz.

Quando o gogó ditava o ritmo, ele dava um banho no amigo. Neste diapasão a parceria já durava 15 anos e de repente Menescal baixa a guarda e é prontamente nocauteado pela noiva. Para realizar seu intento, Estressina Lúcia contou com o pesado reforço dos carrancudos pais e irmãos. Como que solidário ao amigo, em cerimônia conjunta, Sepúlveda também contraiu núpcias. Mas o fez meio de brincadeirinha. Sem ter a medida certa do papel assumido. O gosto pela vida alada corria-lhe às soltas nas veias. Não era um mero casamento que iria fazê-lo declinar da vadiagem. Menescal, por seu turno... De início honrou a promessa assumida perante o padre. Só ao completar seis anos de fiel dedicação à esposa e aos dois filhos varões que vieram logo nos três primeiros anos do enlace foi que teve uma recaída. Algum tempo depois, vencida a síndrome dos sete anos (por pouco a estroinice não detonou seu casamento), reeditou a vidinha de antes na qual se encontrava há pelo menos dez anos.

De casa pro trabalho, do trabalho pra casa, o que de positivo aquela década de marido bem comportado tinha lhe rendido? Nada. Absolutamente nada. Pelo contrário: encontrava-se obeso, com pressão arterial a ponto de nocautear tensiômetros, e o que era pior: desmotivado até mesmo para o sexo. Em parte, culpa da política neoliberal que, dentre outros contratempos, há seis anos não reajustava seu minguado salário. Mas quem mandou se acomodar em emprego público? Resignado, admitia sua parcela de culpa no caso. Seveda é que tinha feito o certo: nunca fora empregado. Colara grau e assumira a construtora da família. Certamente andava muito bem obrigado das finanças. Enfim, por essas e outras necessitava urgente e radical mudança de vida. Para início de conversa teria de dizer não ao sedentarismo, precisava conhecer novas pessoas, ia garimpar no fundo do poço – o há muito perdido gosto de viver. Senão, em breve viria a diabetes, as crises de gotas tornar-se-iam mais freqüentes e agudas, a depressão se instalaria de vez. Estaria definitivamente entregue à velhice. Se pelo menos o tão propalado Projeto Alvorada saltasse do papel à prática. Iria supervisionar obras, e viajando, desenfastiava um pouco da desenxabida vida caseira. Opção improvável. A crise política surgida entre o PFL e PSDB tinha tudo para assumir proporções inesperadas. E sem o firme empenho da bancada pefelista em mergulhar de cabeça nas pilha de MP’s, a pauta de votação não seria desovada; a malfadada CPMF (a seu ver um mal necessário), não seria prorrogada; o Alvorada estava fadado ao destino dos natimortos. Uma voz, não “a voz rouca das ruas”, mas sim a tinhosa e vingativa voz do Presidente da República percutia em seus ouvidos: “Assim não dá! Assim não pode! Farei corte de verbas”. E como nestas horas sempre sobrava para a área social... Mas não estaria, o sociólogo travestido de Presidente, blefando? Afinal, mais que os relapsos Congressistas, que de propósito seguravam a pauta, era o pré-candidato situacionista – então esfregando as mãos para tornar inquilino do Palácio que emprestava o nome ao Projeto –, o mais beneficiado. O fato é que independente de tudo isto tinha que dar outro rumo à sua vida. Até ousaria driblar a marcação cerrada da esposa e ir à procura do velho e bom Seveda...”.

Menescal dormiu com essas e outras reflexões e na sonolenta manhã seguinte – já na Repartição – foi despertado com a chamada do amigo. Que chamada? Aquele telefonema introduzido e interrompido no princípio deste artigo:

– Mudando de assunto, preciso lhe falar pessoalmente.
– Dá pra adiantar o tema, Seveda, ou é segredo de Estado?
– Não, não, Menesca! Apenas necessito mais informações sobre o Projeto Alvorada. É que no momento estou sem obra.
– Tudo bem. Dê um pulinho aqui. Ah, a licitação será feita pela Companhia de Água e Esgoto do Estado. A nós caberá apenas o repasse da verba e supervisão conjunta às obras.
– Ok. Em 40 minutos estarei aí...

A noite mal dormida e a ânsia de rever o amigo não deixaram Menescal se concentrar no trabalho. O olhar vazava através da janela da sala e se perdia no horizonte, quando de repente um Jeep Toyota vermelho o atropelou e deu outro rumo aos pensamentos do engenheiro. Observou o carro cruzar o portão e deslizar pelo pátio, estacionar e expelir, simultaneamente, um homem e uma mulher. Apurou um pouco mais o olhar, e disse consigo mesmo: “É ele”. Fixou a vista na acompanhante do amigo, e pensou: “Esse Sepúlveda não tem jeito mesmo!

Sempre bem acompanhado. Que beleza de gata! Não deve ter mais que 17 aninhos...”. Não se conteve: deixou a sala, caminhou apressado pelo corredor, desceu os 19 degraus que separavam o primeiro pavimento do térreo, e ao pisar a sala de recepção, deu de cara com os visitantes. Só teve olhos para a garota, e na medida que sua fisionomia – mais e mais gulosa – passeava dos pés à cabeça e da cabeça aos pés da moça, passou a traduzir em palavras o estado de excitação que o dominava:

– É a tal coisa. “Quem foi rei nunca perde a majestade”. Aliás, cada dia com o gosto mais apurado”, hein Seveda! Como dizia o Velho Lua: “Pra cavalo véio o remédio é capim novo”. – E ainda desnudando a jovem com extasiada visão, sugeriu: – podemos combinar pra na próxima sexta-feira, boneca, eu ser apresentado a uma irmã ou a uma coleguinha sua”.
Sepúlveda, no entanto, visivelmente perturbado, apressou-se em dar outro rumo à conversa:
– Filha, vai me aguardar no carro, vai! Ligue pra sua mãe avisando que já lhe peguei no colégio e que antes do meio dia estaremos em casa pro almoço.
Dito isto, voltou-se para Menescal:
– Vê se dá um tempo, cara! A garota é minha filha!...
E este, com um sorriso que gradava da excitação ao constrangimento:
– E eu não sei?! Claro que eu sabia! Aqui pra nós, Seveda, eu a observava e pensava aqui com meus botões: Menescal Filho não vai caber em si de satisfação quando souber que você tem esta pérola de filha. Eu particularmente faço muito gosto.

Olho: O gosto pela vida alada corria-lhe às soltas nas veias. Não era um mero casamento que iria fazê-lo declinar da vadiagem

Bernivaldo Carneiro é geólogo / sanitarista da FUNASA/CE e escritor (romancista, cronista e contista)
– E-mail: hidrogeologia.funasa@bol.com.br

 
Voltar Imprimir

Copyright © - Associação Brasileira de Águas Subterrâneas
Todos os direitos reservados