A dominialidade das águas subterrâneas e a comunidade técnico-científica brasileira


A Constituição Federal prevê que o uso das águas minerais está submetido à concessão do poder público federal, através do DNPM, mas por outro lado, a mesma Constituição dá a dominialidade das águas subterrâneas aos Estados...

A elaboração e discussão no âmbito do Congresso Nacional de um Projeto de Emenda Constitucional (PEC) sobre as águas subterrâneas tem suscitado o debate de questões de diversas ordens no âmbito da comunidade técnico-científica, em particular da ABRH e da ABAS. Questões de interpretação jurídica, interesses setoriais, bem como distintas compreensões sobre os limites e possibilidades institucionais estaduais e federais são colocados sobre a mesa de debates para avaliação da Emenda. Contudo, estas questões não são inteiramente novas, mas a desinformação e a falta de produção técnico-científica como subsídio à tomada de decisão corroboram com a dificuldade de se alcançar uma solução efetivamente sustentável.

Conforme a Constituição Federal e legislações correlatas, o uso das águas minerais, potáveis de mesa e termais está submetido à concessão do poder público federal, através do DNPM (artigo 20: são da União os bens minerais, inclusive os do subsolo). Por outro lado, a mesma Constituição (artigo 26: são dos Estados as águas subterrâneas) dá a dominialidade das águas subterrâneas aos Estados, que outorgam poços privados e públicos para abastecimento de comunidades, operados por companhias estaduais e municipais. Afinal, para uma mesma água subterrânea armazenada nos aqüíferos temos uma dúbia interpretação jurídico-instituicional, que constitui-se no elemento básico da pendência.

A solução proposta pela PEC para a questão da dominialidade tem por base tratamento semelhante àquele dado às águas superficiais. Assim, os aqüíferos transfronteiriços do ponto de vista das fronteiras de nações e estados federados serão “federais”, enquanto que aqueles restritos às fronteiras do estado serão gerenciados pelos organismos do poder público estadual. Entretanto, as movimentações dos setores e instituições relacionadas à problemática são limitadas no detalhamento das possibilidades e muito restritas, pois afinal as questões de gestão dos recursos hídricos interessam a toda a sociedade. Os principais argumentos contrários à PEC até o momento estão baseados nos princípios da desconcentração e descentralização do gerenciamento hídrico. A favor situam-se as questões relativas aos limites de competência da gestão de recursos hídricos transfronteiriços, sejam entre países ou entre estados apenas; na possibilidade da gestão compartilhada por distintos estados; na adoção de mecanismos de solução de conflitos entre estados competindo por recursos do mesmo aqüífero; e, nas questões de segurança nacional de aqüíferos transfronteiriços.

O papel dos setores técnicos envolvidos para a solução das controvérsias é o de subsidiar cientificamente os debates sobre a matéria com base nos princípios da sustentabilidade hídrica e ambiental. Do ponto de vista técnico-científico, as bases dos debates são o reconhecimento dos sistemas aqüíferos e dos princípios da gestão integrada, sistêmica e participativa que são as condições de efetividade dos arranjos a serem estabelecidos, uma vez que constituem o cerne da nossa Política Nacional de Recursos Hídricos. No âmbito técnico, vivemos uma mudança paradigmática que implica na ampliação da visão focada no poço para o conhecimento do sistema aqüífero em seu todo. A superação da questão não é imediata, pois envolve investimentos e mudanças estruturais amplas na percepção das águas subterrâneas dentro do ciclo hidrológico e no desenvolvimento de arranjos institucionais baseados prioritariamente na caracterização dos sistemas hídricos superficiais, de forma estanque. Entretanto, as visões dicotômicas vão sendo pouco a pouco questionadas por questões chave como o secamento de nascentes em áreas de irrigação intensiva, rebaixamento do nível dos rios nas épocas secas e agravamento das enchentes pela impermeabilização de solos.

Por outro lado, experiências inovadoras estão sendo conduzidas e poderão contribuir para dar clareza científica aos debates. No âmbito nacional, o Projeto Aqüífero Guarani, preparado e em implementação com recursos do Fundo para o Meio Ambiente Mundial, através do Banco Mundial e da Organização dos Estados Americanos, e dos países envolvidos – Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai – deverá contribuir para o esclarecimento de algumas das questões relevantes. De qualquer forma, o Projeto já colocou a questão das águas subterrâneas na pauta nacional. No ano passado foi lançado um Programa de Águas Subterrâneas pelo Ministério do Meio Ambiente, juntamente à Secretaria de Recursos Hídricos e Agência Nacional de Águas. O Conselho Nacional de Recursos Hídricos - CNRH, por meio da Câmara Técnica de Águas Subterrâneas, contribuiu para o desenvolvimento da compreensão das questões envolvidas através da elaboração e aprovação das Resoluções CNRH nos 15 e 22. Também os estados têm procurado implementar ajustes legais recentes e incorporar aspectos relevantes das águas subterrâneas em suas legislações, como os casos do Distrito Federal, Minas Gerais, Pará e Paraná, após São Paulo e Pernambuco, que foram pioneiros no Brasil.

Do ponto de vista da gestão das águas e das águas subterrâneas há ainda muito o que se fazer no país, principalmente num cenário de agravamento das questões de quantidade e qualidade da oferta hídrica. Nesse cenário, tanto os profissionais quanto as intituições técnicas do país devem evitar as soluções pretensamente fáceis, pois podem acabar precipitadas. O fundamental é a necessidade do compromisso técnico-científico como base para arranjos jurídicos e instituicionais e políticos adequados à sustentabilidade hídrica, ambiental e social. Tendo em mente os legítimos donos das águas: a sociedade brasileira.

Luiz Amore
Coordenador Nacional do Projeto Aqüífero Guarani
Agência Nacional de Águas
Superintendência de Cobrança e Conservação - SCC/ANA

 
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