Bio: um porquinho injustiçado

Se tudo ocorreu ou não tal qual vai aqui descrito, não vem ao caso. O certo é que, com 40% dos domicílios brasileiros sem esgotamento sanitário e mais de 20% sem ligação de água potável – muitos aglomerados urbanos do País poderiam perfeitamente ambientar o fato ora narrado. Ciente de que a disciplina de hidrogeologia de minha graduação privilegiara a teorização, decidi: na primeira oportunidade vou agregar prática a esses ensinamentos acadêmicos. Iniciei o cumprimento da promessa seguindo, pari passo, a mobilização dos equipamentos. Chegamos a Cruz Credo por volta das quatro horas da tarde, de um causticante dia de outubro. O ano? É suficiente dizer que o ocorrido remonta há mais ou menos um quarto de século. Mal desci do carro me baixou um incontido desânimo. Não é que eu esperasse dispor de hotel cinco estrelas, nem tampouco de restaurante classe “A”. Mas o que Cruz Credo oferecia em termos de acomodação e alimentação era qualquer coisa de repugnante. Como repugnante – por via de conseqüência – é este artigo. A propósito, até acho que caberia um pedido de desculpas. Mas se alguém deve se desculpar pelos embrulhos porventura provocados em seu sensível estômago, caro leitor, por certo este alguém não sou eu. Entendo caibam a nossos inescrupulosos governantes, tais escusas. Eles, sim, além de outras dívidas sociais, são os responsáveis pelo caótico quadro do saneamento básico que hoje ainda grassa no país. Em particular nas discriminadas regiões Norte e Nordeste.

Até que Eutanásia Conceição (a proprietária do único hotel-restaurante da Vila, se é que assim aquilo poderia ser chamado), demonstrava boa vontade. Esforçava-se, a coitada, para agradar. No entanto, as finanças da casa, e as condições do meio não eram nada favoráveis a um salto de qualidade dos serviços prestados. Da porta do hotel, fiquei por alguns instantes a varrer, com inconsolável visão, a área central do povoado. Enquanto isto Eutanásia se ocupava da faxina dos cômodos que nos acomodariam durante os trabalhos. Cuja duração estimáramos em quinze dias.

– Por favor, senhora, aonde fica o banheiro?
– É coisa rápida ou é serviço completo?
– Coisa rápida?! Serviço completo?! Ah, sim! Gostaria inclusive de tomar um bom banho.
– Só instantim, dotô.
Não mais que dois minutos e Eutanásia retornou. Trazia pendente por uma alça de arame, uma bombona plástica de 20 litros. A qual, após eu ser conduzido pelo corredor, atravessar a cozinha e pisar o quintal, passou-me às mãos.
– A sentina é ali, apontou a hospedeira.
Repousei a bombona no chão e me pus a bisbilhotar seu conteúdo. Inicialmente pedi explicação para um pesado porrete de jucá, um tanto quando encardido, e três sabugos de milho.
– O porrete serve pra tanger os porco quando tiver fazendo o serviço e os sabugo, craro, é pra se limpar.
– Mas não tem nem jornal, papel de embrulho...?!
– Não tem não. Tem que ser com sabugo mermo.
Na seqüência retirei do interior do “kit privada” uma lata de 900ml de óleo pajeú, até o meio de água, e um pincel.
– A água deve ser para escovar os dentes. Mas, o pincel...?
– Nada disso dotô. A água e o pincel é pro seu banho. É que tamos com pobrema de falta d’água em Cruz Credo.

Diante de tais esclarecimentos, concordei com um menear de cabeça e fui direto à privada. Situada no fundo do quintal, uma das paredes da dependência era o próprio muro. E era através desta parede, depois de escorregar por uma íngreme calha confeccionada com cacos de telha canal comum, que as excretas afloravam extra-muro. Isto quando não eram tragados pelos barulhentos porcos, que disputavam o direito de introduzir o focinho e abocanhar o produto na saída da linha de produção. Era aí que o porrete entrava em serviço. Do contrário o obreiro poderia tomar uma focinhada no traseiro e ser arremessado contra a porta. A qual, por não dispor sequer de uma taramela, tinha que ser escorada com um dos joelhos. Em busca de coragem para enfrentar a triste realidade, me pus a questionar: “Quem mandou – em nome da vocação – eu não ter abraçado a carreira de médico, como tanto almejava minha mãe! Por que eu não me tornara advogado – consoante o desejo de meu pai!”. De repente tive uma sombria impressão de ter ouvido: “Tu vais segurar esta barra, sim. Afinal és geólogo, e como tal tens de fazer carreira é no mato”.

Decorrida uma semana, apenas um aspecto não me permitia estar de todo adaptado à vida de Cruz Credo. Eu já nem torcia mais o nariz para o mal-cheiro do esgoto que saturava as sarjetas; já não me incomodava tanto pisar os desejos da população animal que vivia às soltas pelas ruas; eu até me deixara afeiçoar por um simpático porquinho. Dei-lhe a alcunha de Bio. Logo no segundo dia, aonde eu ia, Bio ia atrás. Nem, e principalmente naquelas horas reclusas, ele dava um tempo. Como não podia entrar junto, eu ia pelo interior da casa e ele, por fora do muro. Lá ficava disputando com a concorrência, seu quinhão. Cota esta, cada dia menor, pois minha renitência era exatamente no que se referia à alimentação. De forma que há dias tendo como insumo, biscoito, leite em pó e ovo cozido, nem de longe, eu era uma usina capaz de dar cabo ao apetite de Bio e companhia. Não era tão somente a falta de proteína animal que me movia a não encarar a comida oferecida por Eutanásia. Até que eu encararia de bom grado, um bem posto prato de feijão com arroz e farinha. O que pegava mesmo eram as intragáveis condições do ambiente...

Não sei se sensibilizado com minha dieta forçada, ou simplesmente com o intuito de fazer sua média básica (Narciso Bacco era um clássico limpa-botas), na noite do sábado seguinte à nossa chegada a Cruz Credo, enquanto desopilava com umas bicadas, o operador da perfuratriz determinou a seu imediato:

– Amanhã, Todo Feio, será abatido um animal. Fique atento ao badalar do sino e vá comprar bastante carne, e da melhor que tiver pra fazermos um churrasco. Temos que arranjar um meio de alimentar o doutor, senão antes de terminarmos os poços de Cruz Credo ele terá de baixar hospital por inanição.
– Ah, então aqui é igual à cidade de minha infância!: no dia que um animal é abatido se anuncia no sino da igreja.
– Exatamente...

Quando Todo Feio chegou ao mercado naquela manhã, não havia mais carne. Muito menos, digna de churrasco. Ele no entanto não voltou de mãos abanando. Pensando em um cozido, levou o que restava do animal.

Passava um pouco das 13h00min, quando Eutanásia chamou para o almoço. A fome me encorajava a encarar qualquer comida de panela. Fui à sala onde a mesa estava parcialmente posta. Antes, porém, travei uma quase inglória luta contra densa nuvem de moscas. Sábio Isaac Newton: dois corpos não podem ocupar, ao mesmo tempo, o mesmo espaço. Eu me preparava para sentar, quando Joly – o feridento cachorro da casa – deu o fétido ar de sua presença. Ele tinha por hábito ficar se roçando nas pernas dos comensais. Por esse instante Eutanásia abriu ala para acomodar sobre a mesa, o que Todo Feio trouxera do mercado. O ambiente se fez mais asqueroso e grotesco. De súbito, pilotado por ânsias de vômitos, devolvi meu lugar às moscas. Instantes depois, refeito do mal-estar, passei a observar através da porta o apetite dos colegas. E na medida que o crânio do animal era desnudado e a falha da arcada superior aflorava, tudo se esclarecia. Até porque durante aquela manhã eu me dera conta da falta de Bio. Pobre porquinho: não passava de um mero bacurim, quando um raivoso obreiro lhe subtraíra – a golpes do já enfocado porrete de jucá – um dente. Mas apesar de tudo Bio parecia sorrir. Seu semblante anunciava ir-se cônscio do dever cumprido. E estava certo o finado. Não alocara verba, não erigira obra, não participara de banquetes, não fora agraciado com comendas públicas; mas também não corrompera nem fora corrompido. Dera, sim, significativa contribuição para que as condições sanitárias de sua natalina Cruz Credo se tornassem menos fétidas, menos insalubres. Mais que um gari, um ator da limpeza pública, fora um sanitarista. Enfim: fizera o que muitos políticos não conseguem ou não se dispõem a fazer em prol do próprio torrão natal.

Bernivaldo Carneiro é geólogo / sanitarista da FUNASA/CE e escritor (romancista, cronista e contista)
– E-mail: hidrogeologia.funasa@bol.com.br

 
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