“A gestão racional depende de uma permanente articulação...”

Secretário de Recursos Hídricos defende um amplo debate das relações entre aqüíferos, rios e lagos para maior popularização das águas subterrâneas e gestão dos recursos hídricos

     O mercado das águas subterrâneas, Aqüífero Guarani, cobrança pelo uso da água e gestão dos recursos hídricos foram alguns dos assuntos colocados em destaque pelo Secretário de Recursos Hídricos do Ministério do Meio Ambiente, Raymundo Garrido. Em entrevista ao ABAS INFORMA, o secretário aproveitou a proximidade do XII Congresso Brasileiro de Água Subterrânea e falou da importância do recurso hídrico no abastecimento público e das ações contínuas para uma ampla divulgação do segmento.

Como o Sr. avalia o mercado das águas subterrâneas?

      A questão do mercado de águas ainda não chegou a nosso País. O primeiro vestígio de seu trato entre nós é o Projeto de Lei do Deputado Paulo Magalhães (PFL-BA), de no 6979/2002, que sugere a criação de um mercado de águas no âmbito do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. Trata-se de um tema futurístico, que depende imensamente de normas consistentes de regulação, para o que aliás, o Brasil já se preparou ao criar a Agência Nacional de Águas – ANA, que se ocupa da implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos, tarefa em cujo contexto inclui-se a regulação. Na verdade, não se deve separar esse mercado em uma fatia para águas subterrâneas e outra para águas superficiais. A soma das duas deve comandar a oferta de água a ser tratada em termos de mercado, confrontando-se com a demanda, a qual decorre da soma de diversos usos da água. O comentário acima somente vem reforçar um entendimento que se tem atualmente sobre o fato de que a gestão dos recursos hídricos deve, tanto quanto possível, adotar soluções do uso combinado de águas subterrâneas e superficiais. No tocante ao mercado, é provável que em alguns casos as águas subterrâneas se tornem mais caras do que as superficiais e, noutros, mais baratas. Em algumas situações, as águas subterrâneas serão obtidas no local de seu uso, o que as tornará mais baratas. As águas de rios e lagos para uso em cidades têm que ser obrigatoriamente aduzidas, o que as encarece. O que é interessante assinalar é que os requisitos do mercado de água variarão em função da realidade física e antrópica de cada região.

Quais as ações da Secretaria de Recursos Hídricos do Ministério do Meio Ambiente para esse setor?

      A Secretaria de Recursos Hídricos – SRH lançou, em 22 de março de 2001, o Programa de Águas Subterrâneas, objetivando articular o trabalho da União Federal com o dos estados. O trabalho da União está relacionado com a formulação e implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos, atribuições da SRH e da ANA, respectivamente; e com a administração das autorizações de pesquisa e lavra de água mineral, termal, gasosa, potável de mesa e aquelas destinadas a fins balneáreos. No que se refere à SRH, a intenção do programa é cooperar e estimular os estados a avançarem em suas respectivas legislações para as águas subterrâneas que, constitucionalmente, são de seu domínio. E houve avanços, de fato, pois é significativa a preocupação de inúmeras unidades federadas com a gestão de seus aqüíferos. Além disso, a SRH foi precursora do Programa do Aqüífero Guarany, essa rica coleção de águas de subsuperfície que “inunda” quase um milhão e duzentos mil quilômetros quadrados, a maior parte no subsolo brasileiro. Atualmente, esse programa conta com a participação da ANA, uma vez que já alcançou a sua fase da implementação. Conforme se percebe, a Secretaria de Recursos Hídricos atua de maneira indutora, pois que constitui uma instância do Núcleo estratégico do Governo, ocupando-se da formulação da política setorial, ensejando que sua implementação e trabalhos gerenciais afins sejam objeto da atribuição da Agência Nacional de Águas e as correspondentes instâncias estaduais.

Quais as suas expectativas para o mercado nos próximos anos?

     Em poucos anos (menos de cinco), o volume de água outorgado no Brasil para usos consuntivos estará superando o patamar de 3.000,00 m3/seg. Esta será a oferta do mercado oficial, pois o que não estiver outorgado não estará sujeito à cobrança e, conseqüentemente, estará fora do mercado potencial. Sucede que, quando o mercado estiver instituído, nem todos os usuários estarão movimentando os seus direitos a uso da água através de transações. Tais transações exigirão um determinado nível de burocracia, pois os interessados em transacionar deverão procurar a ANA (caso de águas de domínio da União) para que esta verifique que a transação não afetará a terceiras partes. A inclusão da geração hidroelétrica nesse mercado, ainda que configure um uso não consuntivo, é automática, mas uma série de requisitos deve ser observada quando as transações se derem entre usos distintos. Além disso, para que o mercado ganhe dinâmica, necessário se torna que os estados (pelas águas se seus respectivos domínios) adiram ao mesmo. A expectativa é, portanto, de uma experimentação gradual, para que o mercado venha a ser, para o quê, aliás, ele serve, um instrumento de indução à eficiência no uso dos recursos hídricos.

E quanto ao Aqüífero Guarani?

     O aqüífero Guarani é para a sociedade brasileira como uma jóia rara para uma família. Com a diferença que é um colosso em termos físicos, pois o volume de água que o mesmo acumula é capaz de alimentar uma população como a brasileira por milhares de anos. E com água de excelente qualidade. Por esta razão, o Governo do Brasil vem empreendendo, em conjunto com os governos do Mercosul, esse projeto de gerenciamento do mesmo. Trata-se, pois, de uma reserva estratégica a qual deve ser bem utilizada. Nesse sentido, um dos cuidados essenciais está no uso criterioso de águas subterrâneas nas regiões de recarga do Guarani como o sudeste do Mato Grosso do Sul e oeste do Paraná, entre outras. O que é verdadeiramente espetacular no aqüífero Guarani é que ele conta com uma camada protetora de basalto, fruto de um extenso derramamento ocorrido há presumíveis 245 milhões de anos (período Triássico), camada essa que chega a alcançar mais de 1,5 km de espessura, contribuindo para a preservação dessas águas.

A cobrança pelo uso da água foi muito debatida. Como está na prática a implantação desse projeto em todo o país ?

      O que existe de concreto, atualmente, no Brasil, é a experiência cearense, que vem do final de 1996, por meio da qual arrecadam-se cerca de R$14 milhões de reais por ano, além do pagamento que já é feito pelo setor de geração hidroelétrico, que totaliza, anualmente, cerca de R$70 milhões. Afora essas duas experiências reais, o Conselho Nacional de Recursos Hídricos - CNRH já aprovou, em março passado, a cobrança a ser aplicada na bacia do Paraíba do Sul, que deverá promover uma arrecadação de aproximadamente R$18 milhões por ano, sendo cerca de 20% em rios de domínio dos estados e a maior parte em cursos d’água federais. Espera-se para este semestre, ainda, a colocação em prática dessa experiência. Finalmente, deve-se considerar a tramitação de um projeto de lei estadual na Assembléia Legislativa de São Paulo, que se encontra em fase avançada e deve ser aprovado no próximo ano, além dos projetos de leis federais nos 1616/99 e 6979/02, em tramitação na Câmara Federal. Quero crer que uma excelente experiência ocorrerá na bacia PCJ (dos rios Piracicaba, Jundiaí e Capivari), o laboratório da verdadeira gestão de recursos hídricos em toda a América Latina.

A outorga reduz os conflitos, permitindo água de boa qualidade. Qual a importância da outorga na gestão dos recursos hídricos?

     A outorga é um instrumento eficiente de política de recursos hídricos. Mas é necessário que se observe que a outorga só é completa em seus resultados quando atua em conjunto com a cobrança. Outorga e cobrança são como dedos de uma mesma mão. E mais: são o polegar e o indicador, que juntos perfazem a maior parte das funções de uma mão. Fiquemos nos comentários sobre a outorga. Esse instrumento funciona como um árbitro que põe ordem no campo, e é da essência da experiência brasileira o fato de que a outorga é capaz de erradicar a maior parte dos conflitos entre os usuários competidores pela água, pois, no momento em que se começa a emissão de outorgas, os usuários percebem que têm, a partir daí, a quem recorrer, não sendo necessário mais tentar buscar seus direitos pela contenda direta com seus competidores. Essa é a verdadeira grandeza do papel da outorga de direito de uso dos recursos hídricos.

O mercado de águas subterrâneas ainda não tem tanta divulgação quanto às águas superficiais. A que atribui essa defasagem?

     A maior difusão das águas superficiais em relação ao uso das águas subterrâneas não se cinge às questões de mercado. Como mencionei em pergunta anterior, o mercado ainda não existe no Brasil. O que se passa é que, na experiência brasileira, e de outros países, foram os hidrólogos que primeiro se debruçaram sobre o gerenciamento hídrico. Para esses profissionais, a superfície da bacia constitui o pano de fundo de seu trabalho, e não há registro de que houvesse preocupação com as águas ditas invisíveis, ou seja, as de sub-superfície. O mesmo se passa com as águas meteóricas. A meteorologia é uma ciência tão importante quanto a hidrologia e a hidrogeologia. No entanto, só recentemente é que se tem tratado do ciclo hidrológico completo, e mesmo assim com pouca freqüência. Afigura-se muito claro, no entanto, que nos dias atuais, a gestão dos recursos hídricos vem envolvendo não somente os hidrólogos, hidrogeólogos e meteorologistas, mas também outras engenharias, a economia, o direito, a sociologia e tantas outras categorias profissionais que estão direta ou indiretamente envolvidas com os temas das águas de mananciais.

Qual a importância da ANA nesse processo de gestão dos recursos hídricos?

     A Agência Nacional de Águas tem uma agenda muito rica de trabalhos. Veja-se que a reforma do Aparelho do Estado deferiu às agências um conjunto de atribuições, que são exclusivas de estado, para o quê também lhes deu flexibilidade organizacional do que resulta uma tremenda agilidade para se antecipar à ocorrência de problemas ou mesmo resolver aqueles já instalados. A verdadeira grandeza da tarefa dada à ANA está no fato de que esta também deve se encarregar da implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos, ou seja, cabe à ANA o “fazer fazer”e não “fazer diretamente”. É muito mais complexo fazer os outros fazerem o que deve ser feito do que fazer de modo próprio, creio que isto diga quase tudo da riqueza da agenda da ANA.

Mensagem para o segmento de águas subterrâneas...

    As águas subterrâneas são uma fase do processo de movimentação da água da natureza que enseja uma fascinante contribuição para o usuário dos recursos hídricos. Isto decorre dos processos naturais físico-geoquímicos capazes de purificar esses recursos durante o seu trajeto de infiltração. Em outras palavras, a natureza faz o tratamento das águas subterrâneas e faz menos pelas superficiais. E faz esse tratamento a custo incomparavelmente mais baixo do que aqueles das plantas industriais de tratamento, porque o faz a custo zero. E isto precisa ser mais valorizado pelo segmento dos hidrogeólogos. O Brasil, com seus 112.000 km3 de reservas de águas subterrâneas, muito se espera em termos de uma gestão racional dessas águas. Essa gestão racional depende, evidentemente, de uma permanente articulação, no espaço da bacia, com as águas de escoamento superficial. As relações entre aqüífero e os rios e lagos precisam ser colocadas na ordem do debate. Creio que, dessa forma, o trato do problema das águas subterrâneas irá ganhando a mesma dinâmica que os hidrólogos deram às águas superficiais.

    Olho: O aqüífero Guarani é para a sociedade brasileira como uma jóia rara para uma família

 
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