O Falso “munheca-de-torquês”

Pelo menos um par de vezes eu detectara seu desejo, porém, só me convenci de que era isto o que de fato queria quando ele golpeou minha porta naquela manhã. Estava inspirado, para não dizer: deveras insuportável. A intrínseca falácia, o peculiar ufanismo e a característica bazófia, saíam aos borbotões. Mesmo assim não consegui enxergar nele o perfil exigido para o que pleiteava. Não somente pelos anos vividos – os quais posicionavam-no com sobra na terceira idade, mas também pela decrepitude que encerrava em si, já podia muito bem estar com os pés definitivamente fincados no conforto do lar. No entanto o caos financeiro que sempre o assediou com incontrolável voracidade, empurrava-o para aguardar o despejo da inexorável compulsória. Considere-se, pois, que seis dos doze filhos vivos eram menores. Que além destes, com ele residiam mais cinco netos: dois do primogênito – ora divorciado – e os outros da quarta filha. Esta e o marido, com pouca disposição para o trabalho, mas com bastante apetite e energia para perpetuar a espécie; também viviam sob o modesto teto de Venturoso. De forma que essas vicissitudes e outros percalços – contingência natural dos mortais comuns, somados ao modo de vida que cultivava, respondiam por sua corroída geografia. Ressalte-se que há exato meio século detonava diariamente dois maços de cigarro de alto-impacto e alguns comprimidos de gardenal. No caso, os anti-anabolizantes responsáveis pela raquítica compleição: ínfimos 38 quilos mal-distribuídos em escasso um metro e cinqüenta de estatura.

Com um olho no micro e outro na pilha de papel que reclamava demanda, protelei nossa conversa para a manhã seguinte. O que não o impediu de sair pilotando seu idealismo: considerava-se de antemão o mais novo integrante de minha equipe. E não estava de todo equivocado. Como é que eu, a exemplo dele, uma vítima da impiedosa fúria neoliberal, poderia castrar o explícito e justo desejo de sobrevivência de alguém? Afinal o que há demais, após oito longos anos de congelamento salarial, aspirar-se a algumas diárias? Por sinal, defasadas? Pois bem, ele deixou minha sala e eu suspendi temporariamente a elaboração do arrazoado. Dei um tempo em meu firme propósito de convencer a Jurídica e a Comissão de Licitação de que meu pedido de brocas e bits era cabível. Que não se consegue perfurar poços com as unhas. Suspenso o contraditório, entreguei-me a sopesar a proposta do amigo. Aí, muito embora caudalosa, a acidez que escoou sobre os meandros dessas reflexões, não assoreou de todo meu bom-humor. Dei vazão à demanda reprimida de riso que me pululava o peito. É que apesar de minha boa vontade, o hercúleo vigor físico que se dizia ter, soava-me como uma hilariante piada. E assim, auxiliando um operador de sonda percussora – conforme propusera, iria se arrebentar ainda mais. Cheguei até mentalizar duas imagens: inicialmente a titânica peleja de Venturoso tentando apontar um trépano, e depois às voltas com o manuseio de uma haste cujo peso ia além de meia tonelada. E como eu não pretendia desbancar Adolf Hitler em matéria de maldade, pensei algo mais brando. Decidi designá-lo para uma das Equipes de reabilitação, desenvolvimento e teste de produção de poços.

A primeira viagem de Venturoso foi à Serra da Ibiapaba, onde o frio fermentou sua inflável resistência ao banho. Em vinte e cinco dias, apenas um. E isto porque não pôde escapar da chuva. Mas não foi exatamente este episódio, o que Nó Cego e Encanta Moça, no caso os outros dois componentes da equipe, trouxeram-me de mais folclórico daquela estréia. Tentava Venturoso amarrar no tronco de uma mangueira, uma das extremidades da lona que ampararia o grupo gerador de energia, da chuva que se avizinhava, quando um impetuoso redemoinho fez dele e do encerado, um parafuso, e acabou por depositá-los na copa da frondosa árvore. Frise-se que o delicado resgate só ocorreu depois que São Pedro acionou de volta suas comportas. Aliás, a julgar pela intensidade e duração da chuva, por certo o “Porteiro do Céu” se divertiu bastante com aquela “saia-justa”.

Tendo em mente o episódio, sem contudo atinar para o fato de que estaria lhe catapultando o ego às nuvens, recomendei-lhe reserva nos trabalhos mais arriscados. Foi o suficiente para ele se autodenominar Gerente-supervisor e pregar aviso aos outros dois componentes da equipe: “Estou aqui para observar, orientar e levar ao conhecimento do Doutor” – o doutor era eu, “Via relatório, o que se passa nesta frente de trabalho. Fiquem sabendo que quem contrariar uma ordem minha será sumariamente expurgado da equipe. Fui claro, ou algum de vocês aí ousa me desafiar?”. Ousaram. Não de forma explícita, mas de maneira sub-reptícia. E foi logo na segunda viagem, que o marrento Venturoso viu sua “gerência” se afogar na lama. Mais precisamente quando montavam a tubulação do Air lift para o início do desenvolvimento de um poço, então recém-construído na praça central de Mangatimbal. Nó Cego e Encanta Moça armaram a maquiavélica cilada e aguardaram a sirene do vizinho colégio anunciar o recreio das 15 h.

Cercado de colegiais e confortavelmente refestelado em uma cadeira de balanço à sombra do pé de figo próximo à obra, Venturoso transpirava vantagens. Entre uma anotação e outra falava de sua função na equipe, dizia de um tal conceito que gozava na repartição, comentava o prestígio político que se dizia ter; quando Nó Cego, com inabitual subserviência:

– Chefe, o Encanta foi comprar pilha para o medidor de nível e eu não queria parar. Se o senhor não se incomoda...
– Fala de uma vez, cara! Seja prático como eu sou!
– É que eu preciso apertar aquele cano, apontou para a tubulação, que crescia poço adentro.
– Vou, mas saiba que isso não condiz com meu cargo.
– É por isto, chefe, que estou meio sem jeito para lhe...
– Não se preocupe. É até bom para eu exercitar os músculos, falou se levantando de súbito e se dirigindo ao poço, tentando atrair a jovialidade que lhe ia bastante longe.
Devidamente calculado, a chave que caberia Venturoso segurar, posicionava-o de forma que a linha imaginária do prolongamento de seus braços fazia o ângulo certo com o trecho inicial da calha do circuito de lama. Do outro lado da rua, tendo como escudo, uma coluna do bar, Encanta Moça observava tudo sorvendo um suculento refresco de graviola.
– Não se preocupe, chefe, que eu não vou apertar muito.
– Ah! Vai, sim! Como Supervisor e técnico que o sou, não vou lhe ajudar plantar a semente do risco. Não posso colaborar para uma eventual queda desses canos no fundo do poço. Pra que é que temos força? Saiba que ainda hoje sou campeão de queda-de-braço. No meu bairro me chamam de munheca-de-torquês, quebra-ossos, braço-de-bimbarra...
– Não é bem uma questão de força, chefe. O problema é que a bentonita deixou o chão muito escorregadio, e aí o...
– Aqui quem dá ordem sou eu, rapaz? Obedeça-me e ponto final! Ou perdeu a noção do perigo?
– Então fique firme que eu vou apertar, chefe.
– Pode até dá um nó cego para justificar seu apelido!

Mal Venturoso fechou a boca e teve seu momento de ginasta olímpico. Impulsionado pelo brusco e potente torque que Nó Cego imprimiu à chave, ele deu uma acrobática cambalhota sobre a ferramenta que segurava e caiu sentado. Aí, fazendo do ossudo traseiro uma prancha: esquiou o primeiro trecho da canaleta, passou lotado pela caixa de desarenação, e ao final do zigue-zague da calha, precipitou-se no tanque de decantação. Não fosse sua extraordinária leveza, a alta viscosidade e o elevado peso específico do remanescente fluído de perfuração, ele teria dado o segundo mergulho de sua vida. E desta feita – ao invés de líquido amniótico, lama. Pois suas únicas braçadas tinham sido na época que ainda habitava a placenta materna. Mesmo assim levou seu público, Nó Cego e Encanta Moça ao êxtase. Estes, no entanto, solidários às ensurdecedoras vaias e impiedosas gargalhadas do colégio e dos demais curiosos presentes, alçando-o pelos braços, conseguiram desatolar e trazer para fora do buraco, o pálido e esbaforido Venturoso.

Bernivaldo Carneiro
Geólogo / sanitarista da FUNASA/CE e escritor
hidrogeologia.funasa@bol.com.br

 
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