Curativo hidráulico

Havia dois dias que o Dr. Pinguço se encontrava em especial visita a botequins, quitandas, quiosques, bodegas, mercearias, bares, restaurantes, e onde mais se pudesse sorver uma boa pinga em Propinópolis. Ainda na noite anterior, um dia depois de pisar pela primeira vez aquelas plagas, ele havia confessado estar embriagado com o cavalheirismo e a hospitalidade dos Propinopolenses. Na verdade mais um mero ataque de demagogia. Antes de tudo uma baita ingratidão com as virtudes que, somente ele, conseguia extrair da aguardente local. E foi envolto neste clima de boa vizinhança e plena satisfação etílica, que lançou mão do jornal naquela manhã de sexta-feira. De chofre as letras garrafais da manchete de primeira página lhe assaltaram a vista e o pensamento, e num ímpeto de empresário, sacou do celular: sua outra cachaça. Gostou do que ouviu naquela maravilha da eletrônica. À qual era muito grato por traduzir sua importância e revelar a imagem do homem de negócios que, junto com a parte do santo, derramava nos pés dos balcões dos botecos da vida. – “Necessito de uma audiência com o presidente do serviço de água, antes porém devo levantar dados de seu modus vivendi e operandi”. – Um trago aqui, uma conversa-fiada ali, apurou que o homem não dispensava um happy-hour para abrir os serviços dos finais de semana. E o local preferido era o bar e restaurante Bode Assado.

O Dr. Pinguço e o amigo Papudim foram os primeiros fregueses do estabelecimento naquele final de tarde. E quando untavam a língua e azeitavam a palavra com a quinta dose de uma purinha de lamber os beiços, um casal se avultou diante da atenta visão do primeiro. Coube ao destino acomodá-los numa das mesas ao lado. Irrequieto, o Dr. Pingunço ainda desafiou a apurada intuição que a aguardente lhe conferia. No entanto o companheiro de copo confirmou a suspeita. – “Tudo está saindo tal qual programei” – disse no pensamento e ficou no aguardo do momento apropriado. – Os gestos largos, a expressão teatral que imprimia à conversa com Papudim enquanto fingia ver a novela, montavam o cenário em torno de si, quando o satélite jogou no vídeo povoado de fantasmas, as manchetes do telejornal. Imediatamente o Dr. Pinguço levou o indicador direito á boca cerrada, e, amiúde temperando o paladar com umas e outras, saboreou com especial atenção a tão aguardada matéria jornalística. Um show da jovial e linda repórter. Auxiliada pelas imagens que passearam da captação à distribuição, trafegando pela adução e reservação –, ela descreveu o sistema. Escancarou o caos.

– Que absurdo, amigo! Vocês não merecem isto!
– Faz tanto tempo que a gente até já se acostumou...

Papudim estava certo. Implantado pela F.SESP quando o Governo Federal se dava ao trabalho de construir e operar Sistemas de abastecimento de água que eram exemplo para o mundo, Propinópolis tivera sua época de glória nesse tipo de serviço. Mas exatamente quando o sistema reclamava reforço hídrico, instalou-se a febre da descentralização das ações do Poder público. Foi aí que o então prefeito apurou a vista e vislumbrou vantagens na municipalização. Porém dois anos após a derrota dos vereadores de oposição que sonharam com a concessão do sistema sob a tutela da Cia. Estadual de Água e Esgoto, as torneiras de Propinópolis andavam mais desidratadas que faquir sob o sol de novembro em Teresina. Assim sendo... Não!, seria no mínimo uma impropriedade minha tachar aquilo de poço. É que os parcos recursos municipais, e o apetite de “ferida-braba” em perna de gordo, da caixinha política, empurraram o Presidente do SAAE para uma empresa de fundo de quintal. Resultado: diâmetro de perfuração incompatível com o diâmetro de conclusão, abertura excessiva e posicionamento inadequado dos filtros, ponte de cascalho, desenvolvimento incompleto, teste de produção falho, ausência de cimentação anelar e de sapata de proteção sanitária... A tal obra poderia ser classificada como qualquer coisa; menos como poço. E como vingança pelo amadorismo e falta de escrúpulo dos envolvidos, ela se recusou a desempenhar condignamente o papel para o qual fora executada. É verdade que até produzia água, todavia não se furtava em remeter junto, excessivo aporte de sólidos. Aí, depois de corroídas algumas bombas e removidas toneladas de areia do reservatório de reunião, a engenhoca foi desativada. Mais ou menos por este tempo surgiu o Dr. Pinguço. E sua proposta era tentadora. Considere-se, pois, a índole do governo municipal: pautada pela excessiva carência de vontade política e completa falta de espírito público.

Sempre mais dedicado ao álcool e ao tabaco do que aos estudos, depois de oito mal-sucedidos vestibulares o Dr. Pinguço lançara-se dos bancos escolares ao mercado de trabalho. A primeira empresa a lhe abrir as portas foi uma perfuradora. E ele até que começou bem: ao cabo de um ano de firma pilotava uma roto-pneumática. E o fazia com pose de comandante de nave espacial. Mas o passar dos anos impuseram-no relaxamento, até que a galopante assiduidade aos bares e o crescente absenteísmo derrotaram a paciência e a vista grossa do empregaedor.

A indenização trabalhista – depois de reservados 35% para a pinga e o cigarro de cada dia –, permitiu o Dr. Pinguço realizar o sonho empresarial que trazia do berço. Montou uma modesta unidade de recuperação, desenvolvimento e teste de produção de poços, e passou a divulgar mais intensamente, a imagem de Engenheiro–geólogo. De sorte que foi amparado neste manto forjado à base de falsidade ideológica, evidentemente, adicionando-lhe a marra de Empresário de projetos, construção e serviços gerais na área dos recursos hídricos, que ele se apresentou ao Presidente do SAAE. Dizia-se deveras sensibilizado com a veiculada carência de água de Propinópolis e trazia uma proposta, por sinal de baixo custo, para recuperar o problemático “poço”.

Acertado o usual porcentual que fazia a alegria do prefeito e asseclas, tudo correu com a mais absoluta celeridade. No meio da semana seguinte o Dr. Pinguço assinou o contrato, jogou a ordem de serviço na pasta de executivo, adquirida em Ciudad del Leste, e deu início aos trabalhos. Seu pecado, no entanto, foi ter confiado cegamente no operador da captação. Os 120m – nível a partir do qual a eletro-bomba não descia –, não era o fundo do chamado poço. Era, sim, o fim de sua câmara de bombeamento. E foi também o fim do sonho d’água nas torneiras dos propinopolenses, da pose de doutor do empresário Pinguço, do desejo de reeleição do prefeito... É que sem o perfil construtivo e sem conhecer os dados técnicos do dito poço, os quais poderia ter levantado junto à perfuradora, não haveria mesmo como o astuto empresário saber que ali existia uma brusca redução de 8” para 4”. E o que era pior: tal estrangulamento coincidia com o nível do aterro, e os aqüíferos e os filtros estavam todos abaixo daquele ponto. Aí ele desceu 120m de tubo de PVC comum de 5” (os 50m inferiores crivados a serrote), cimentou um metro para fixá-lo no que suponha fosse a base do tal poço, e jogou algumas latas de cascalho no espaço anelar intertubos. Dado o devido tempo para a pega, instalou o compressor. A constatação foi desoladora: a engenhoca que antes produzia água e areia, tornara-se completamente improdutiva. A “gambiarra” que o Dr. Pinguço batizara de “curativo hidráulico” havia produzido um efeito “garrote”. Resultando um torniquete. Estava assim engendrado o mais caricato dos muitos Frankensteins hidráulicos que se fazem por este Brasil afora. Ou alguém tem dúvida que esta nossa área está seriamente contaminada de picaretas? E que a maioria destes é bem menos qualificada que o Dr. Pinguço?

Pois é. E como muitos contratantes de poços não entendem do riscado... curvam-se ao atrativo do menor preço. “Dão com os burros n’água”. As aberrações se sucedem. E o que é pior: “a vaca vai pro brejo” também no que se refere aos recursos hídricos, ao meio ambiente e à natureza em geral.

Bernivaldo Carneiro
Geólogo / sanitarista da FUNASA/CE e escritor
hidrogeologia.funasa@bol.com.br

 
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