Também com um banho desses!...

Só e somente só no tocante aos recursos hídricos, o desembarque do dr. Fontourinha não foi vantajoso para o Estado do Ceará. Uma vez que na condição de funcionário público federal exemplar que é, e antes de tudo como defensor de quem acorre a seus préstimos advocatícios, tem sido de uma serventia inestimável aos conterrâneos cabeças-chatas. Antes de tudo um hábil reconciliador de casais em processo de separação, um competente tocador de divórcio quando os fragmentos da relação já não mais comportam restauração. Ressalte-se: apenas um ou outro, ao arrepio da lei. De forma que não foram poucas, as vezes que o notável causídico, do alto de seus aprofundados conhecimentos dos direitos civil e criminal, trajou-se de seu uniforme predileto e mostrou por “a” mais “b” que muitos figurões metidos a sebo do poder judiciário não têm competência para honrar a toga que ostentam. E o que é melhor: fazendo da justiça um sacerdócio. Sem olhos grandes para pecúnias. É verdade que teve lá seus tropeços, mas no balanço geral a resultante sempre apontou para o destino dos vencedores.

A prosódia fluente, o linguajar jurídico eloqüente, a imponência do indefectível paletó xadrez e da gravata vermelha combinando com os suspensórios (ainda hoje a farda do dr. Fontourinha quando pisa tribunais); não lograram êxito diante do intransigente inspetor Filúvio Propina. É que este, sem correr uns por fora — daí o sobrenome da peça —, não existe lábia malandra, não há argumentos legais que desabone sua pose de austero. Nada leva à lona, sua empáfia de justiceiro. De forma que desta feita nosso “defensor público” se deu por vencido: — “Esse insucesso, caro Zeferino, é o que eu chamo ossos do ofício. Não é possível golear o Cruzeiro todo dia em pleno Mineirão. Existe o dia da raposa e o dia papão. Quero dizer: um dia é da caça; o outro do caçador”. — Disse isto com um braço amigo sobre o ombro de seu cabisbaixo constituinte, enquanto deixaram Filúvio Propina cantando de galo. Tirando onda de paladino da honestidade. Com ares de aplicador implacável da lei e dos bons costumes.

Então sóbrio e com as palavras de seu outorgado friccionando as paredes da ressaca moral, posto que o mal-estar físico já havia se diluído com o tempo, Zeferino se entregou a digerir os exageros da blitz. Não devia nunca ter buzinado insistentemente atrás do busão. Até porque muito embora desconhecesse o fato de o motorista do coletivo encontrar-se detido por uma blitz rodoviária encoberta pelo ônibus; era quase meia-noite e estavam enfrente a um hospital... Quem sabe se quando da abordagem, tivesse sido mais tolerante, menos afobado; o patrulheiro não teria relevado seu rompante de impaciência! Mas, não... A malvada da cachaça tinha poderes sobre ele. Dotava-o de uma coragem quase sempre descabida e nas mais impróprias ocasiões. Aí não deixara por menos. De forma que assumia ter sido arrogante. Mas mesmo tendo se saído com quatro pedras nas mãos, será que era justo receber todas as multas possíveis e imaginárias e, em decorrência, perder a habilitação? Não! Isto, não. Afinal o que haveria demais em ter levantado a voz e atribuído procedimentos safados à genitora do policial? Se por um mero deslize ao soprar o apito, dizem-se cobras e lagartas da mãe do árbitro de futebol, por que não “homenagear” com os mesmos adjetivos, a infeliz que pusera no mundo aquela besta quadrada do trânsito cheia de nó pelas costas! Até porque não andava a serviço da prevaricação... Vinham de um jantar onde fizera uma boa média com a esposa.

Bem, se alguém esperava uma narrativa tendenciosa, desculpo-me por contrariá-lo. Achei justo citar um triunfo e um dos raros insucessos do dr. Fontourinha em defesa daqueles, a quem denomina, hiposuficientes.

Nascido, criado e formado na divisa do Pará com o Estado do Amazonas, portanto em meio à maior fartura de água do país, jogar na rede de esgoto — durante um único banho —, algumas dezenas de metros cúbicos do líquido vital, nada significa para o dr. Fontourinha. E foi com este costume, o qual soa como um grande pecado, sobretudo para nós do semi-árido, que ele aportou de mala e cuia no Ceará. Era o princípio da década dos noventa. Época de estiagem prolongada.

Torcedor fanático do Paysandu e também dado a praticar este esporte, foi chegando e se mostrando cativante e vocacionado para fazer amigos. De sorte que dias depois integrava nosso grupo de pelada. E como atropelar a gorduchinha nos remete a umas cervejas depois para repor o suor drenado, e estas pedem churrasco para alimentar o físico, e a uma boa prosa para a nutrir a alma, não raro, varávamos a madrugada. E era ao nascer do sol que o advogado encerrava o banho iniciado às 20h00 do dia anterior. O que não significa dizer que ele permanecia aquelas dez horas debaixo do chuveiro com vazão de cascata. No entanto, entre um gole aqui e um tira-gosto ali; em meio a um esclarecimento jurídico cá — pertinente às ações trabalhistas, aos nossos precatórios — e uma fofoca ou uma piada acolá; ele seguia se molhando. Se eu ou um outro colega igualmente cioso dos recursos hídricos, à sorrelfa, fechava a torneira; sem perder o meado da conversa, o Dr. Fontourinha ia lá e abria. Molhava-se e voltava para a roda de prosa enquanto a água seguia derramando ralo abaixo. Certo de que no primeiro sábado do mês seguinte o doutor lhe molharia a mão, antes que a caixa d’água fosse à exaustão, o caseiro corria para ligar o moto-bomba do poço e assim o prolongado banho não sofria solução de continuidade até o raiar do dia. Por este tempo, mais ensabonetado que participante da banheira do Gugu, enxugava-se calmamente e — com paciência de monge — entregava-se aos cremes e desodorantes, aos talcos e perfumes. Uma hora depois, mais cheiroso que filho de barbeiro, o doutor tomava o caminho de casa. E ia sem a consciência e o remorso de ter contribuído e muito para agravar ainda mais nossa deficiência de água. Ia sem atentar para o fato de que após sua chegada, o balanço hídrico do Estado do Ceará — cada dia mais deficitário —, nunca mais seria o mesmo.

Bernivaldo Carneiro
Geólogo / sanitarista da FUNASA/CE e escritor
hidrogeologia.funasa@bol.com.br

 
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