Show para inglês ver

Em um primeiro momento, o ano foi o de 1996, construirmos três poços rasos parcialmente penetrantes no aqüífero livre de hidráulica conjunta composto por Dunas e Formação Barreira. Apesar de quantitativamente viáveis, foram descartados. Resquícios de uma transgressão marinha de tempos idos que não se medem com vidas humanas, conferia um alto teor de cloretos àquelas águas. No ano seguinte nossa ousadia se fez mais profunda: tínhamos por alvo, o Aqüífero Açu. Isto é, se Açu houvesse naquela borda de bacia. É que a bibliografia hidrogeológica local oscilava entre omissão e a obscuridade. Aí perfurados 231m, desprezamos o conglomerado basal e o poço foi concluído com 180m. Existia Açu, sim e a vazão foi relevante, mas... Além dos sais — não obstante o preventivo isolamento do Terciário e Quaternário — a presença de fósseis no arenito dava, à água, odor incompatível com o pretendido consumo.

Passaram-se mais quatro anos e voltamos a ser intimados. É a tal coisa: quando vislumbram vantagens a sensibilidade política flui à flor da pele. E no caso em questão, além dos não confessados (que sempre existem), havia um forte motivo aparente. A carência de água de Majorlândia era gritante. E não só padeciam os habitantes fixos, mas também a população flutuante que à época já superava àqueles. A beleza dessa comunidade e o encanto das praias adjacentes — haja vista o exotismo de Canoa Quebrada — atraem veranistas do Ceará e do vizinho RN e turistas de várias partes do mundo, para nosso litoral Leste.

Aí ancorado em um estudo Geofísico que tinha pretensões, não só de estimar a produção, mas também de delimitar a interface água continental/ água marinha; iniciamos uma bateria de quatro poços à margem da faixa de domínio Norte da BR–304 que liga Aracati a Mossoró. E para gáudio dos que torcem por nosso sucesso, digo a bem da verdade que desta feita o trabalho foi coroado de êxito. Os poços se revelaram generosos em qualidade e também em quantidade de água. Com uma cajadada golpeamos, à morte, dois problemas: os abastecimentos de água de Marjolândia e da comunidade vizinha. A igualmente aprazível: Quixaba.

Por índole, atento a minha volta, fui atraído a dedicar mais atenção a um dos três operários que conseguíramos em uma cata quase inglória pela redondeza, para nos auxiliar. Era o tipo da pessoa que tinha tudo para carregar, 24 horas por dia, a cara dos de mal com o mundo. Afora outros revezes de sua “vida severina”, trabalhava pesado de sol-a-sol em troca de uma merreca. Isto quando não ia até tarde da noite. O físico! Bem, o biótipo... Não fossem as rugas faciais esculpidas pela erosão do tempo e as têmporas pinceladas pelas agruras do mundo, poder-se-ia confundir-lo com uma criança. Além do que, nascera Angélico Baltazar e ainda nos verdes anos se firmara como Azarzim. Enfim: de tal forma fiel ao auguriento apelido, que anos atrás tivera o olho direito vazado. Ossos do ofício. Resultado de uma pernada desferida por um irado indivíduo de nome Crocodilo, que cantando literalmente de galo, decretara-se terminantemente contra abraçar a dança em parceria com a cultuada estrela do “axé music”, Sheilla Perez.

Mas a despeito de tudo isto, Azarzim era só alegria. Contava piada e fazia macaquices, narrava seus causos e ria. Ria bastante, muito embora a carência dos rebeldes caninos e falta dos bandoleiros incisivos não fosse favorável a tal estado d’alma. Em síntese: um irreverente nato, um pândego por natureza. Uma pessoa, por assim dizer, ajustada a amaciar os percalços da própria vida, moldada a curar melancolias e angústias alheias. E para quem os vernizes do bom-humor levam-no a celebrar o santo e o libertino a um só tempo, logo me afeiçoei a Azarzim. Azarzim logo me tomou por confidente. A partitura de sua vida era um rabisco só de insucessos sobre insucessos. Nem uma das seis mulheres com as quais dividira um teto — por aquele tempo andava desfalcado de companheira —, tivera cerimônia em presenteá-lo com robustos e frondosos chifres. E afora um sem-número de outros contratempos, também não dera sorte nas urnas. Redundara em fragoroso desprestígio eleitoral, sua busca de assento na Câmara de Vereadores de Aracati. Também vinha de um sonoro não, dito por sua ausência de predicativos anatômicos, ao desejo de uma figuração em “Bela Donna”. Película protagonizada pela conterrânea Florinda Bolkan, ambientada naquela região. Mas Azarzim falou isto e muito mais, de forma bem-humorada, sem mágoa nem rancor, gozando a si próprio.

Fiel ao preestabelecido, a casa novo resultado eu pegava do telefone e o repassava ao prefeito. De pronto ele agendava uma visita à obra, mas... Cansado de promessas sopradas para outras bandas pelos viciados ventos da política, resolvi produzir uma gozação: cerquei o terceiro poço com plástico retirado das embalagens dos produtos então usados, mandei acionar a bomba de teste, empunhei a câmera de vídeo e a máquina fotográfica, entreguei a tesoura a Angélico Baltazar e pedi que ele inaugurasse a obra. Com os pés descalços esparramados sobre a proteção sanitária que ele construíra com competência e esmero, Azarzim não só cortou a improvisada fita; também proferiu discurso. Os gestos cênicos e a retórica em nada deixaram a dever o mais gongôrico e hipócrita dos políticos. E isto, sob o olhar — a um só tempo — inquisitivo e admirado do Prefeito, que chegara durante a simulada solenidade...

E do trabalho à diversão, que ninguém é de ferro... Bem, desde o primeiro dia hospedado às barbas de Canoa, na noite do sábado que se seguiu ao início dos trabalhos, dei-me o direito de olfatar os ares de nossa Broadway. Os quais, de tão descolados, não sei se os diria: latinos, americanos, europeus... posto que são uma mescla dos odores do mundo.

Canoa vivia as glórias da freqüência. E como se tudo fosse fruto do acaso, era um fervilhar de gringo indo, brasileiro vindo, e vice-versa. Uma harmonia ditada pela mais absoluta falta de organização. Sem ter aonde sentar, fiquei a esmo e, nas idas e vindas, cruzei com Azarzim. Absorvido pelo serviço, ele não me viu. Tinha a boca imersa num megafone: “Senhoras e senhores não percam às 22h00, na praça da Broadway o maior espetáculo da terra. Venham se deliciar e aplaudir Sheilla Perez, a perua que dança. Ladies and gentlemen, don’t lose at 22:00 o’clock in the square of Broadway... Señoras e señores no pierdan a las 22h00 en el... Signore e gentiluomini non.... Damen und gentlemane...”

Aportei na praça à hora anunciada, o que não me poupou sérias dificuldades no abrir espaço entre a estrangeirada para me pôr aos pés do palco. Palco?! Palco, não! Diz melhor quem disser ringue. No centro, ao som de “Na boca da garrafa” saído de caixas asmáticas, o belo exemplar de galipavo meleagris já marcava passo. Trajava um minúsculo short e uma inexpressiva blusa não menos diáfana. Sobre a cabeça, uma peruca loira... Quando Sheilla Perez tinha o pé direito apoiado, o esquerdo estava no ar; quando apoiava este, erguia aquele; se lhe falseavam os dois, o rabo tocava o flandres da plataforma que pisava. E era exatamente neste instante, antes de absorvido pelos aromas de outras fumaças do ambiente, que o esquisito odor denunciava a farsa. Neste ritmo, a estrela ainda dançava a primeira música quando... Bem, como o show era de fato para inglês ver, o primeiro a se manifestar foi um britânico: great!... A partir daí não faltaram: ohhhh! bravo! bravíssimo! “bravô”!.. Por este tempo, sem perceber o megafone ao alcance da voz, Azarzim gritou para a “Assistente de palco”. Advertia-a para baixar a chama do fogareiro uma vez que a chapa sobre a qual sapateava a perua, já lhe sapecava os pés, chamuscava-lhe o rabo. Foi aí que um peruano de maus bofes (era extensa a folha de intransigências daquele eco-chato tempo integral em defesa dos animais); abriu caminho entre a multidão. Minutos depois, ladeado por três policiais ele exibia a credencial do Green Peace e com um par de algemas selava o solene convite. E assim decretado o fim do show, restou ao pobre Azarzim (isto sob empurrões e debaixo de cutucões de cassetete nas costelas e costas), abrir trilha em meio a apupos e ovações a caminho do inafiançável xilindró.

Bernivaldo Carneiro Geólogo / sanitarista da FUNASA/CE e escritor hidrogeologia.funasa@bol.com.br

 
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