Senhores das Águas

Aprendemos na escola que o Brasil foi descoberto por Pedro Álvares Cabral em abril de 1500. Isto constitui um fato importante da expansão marítima portuguesa iniciada no século XV. Porém, para entendê-la em termos de água, devemos considerar as transformações verificadas na Europa Ocidental, a partir de uma data situada em torno de 1150. Foi nessa época que a Europa, nascida das ruínas do Império Romano e da presença dos chamados povos bárbaros, começou, pouco a pouco, se modificar pela expansão da agricultura e do comércio.

Assim, uma região esmagadoramente rural, começou a ter uma vida cada vez mais urbana, onde a vida política começou a se expandir, muito embora o mito do Império ainda proporcionar uma certa coerência cultural e mesmo legal. A partir do século XIII, foram-se definindo às fronteiras dos países como organizações centralizadas de poder, cuja figura dominante era o – príncipe - e a burocracia em que se apoiava. Mas o avanço não foi, como se poderia pensar, um impulso irresistível, sem marchas e contramarchas, rumo aos tempos modernos. Ao contrário, houveram marchas e contramarchas, destacando-se a reconquista da Península Ibérica aos mouros; o Mediterrâneo deixou de ser um “lago árabe” onde os europeus não conseguiam sequer colocar um barquinho, as cruzadas ocuparam Chipre, a Palestina, a Síria, Creta e as ilhas do Mar Egeu; no noroeste da Europa houve a expansão inglesa na direção do País de Gales, da Escócia e da Irlanda; no leste Europeu, os alemães e escandinavos conquistaram as terras do Báltico e as habitadas pelos eslavos.

As discussões mais significativas sobre as causas destas marchas e contramarchas têm salientado o impacto de epidemias, destacando-se como a mais famosa, a peste negra que grassou a Europa entre 1347 e 1351. Há historiadores que sustentam que, dadas as limitações inerentes à organização social feudal, não havia suficiente investimento de lucros na agricultura, nem uso eficiente da gota de água disponível, de modo a aumentar a sua produtividade, tal como se tem hoje no Brasil, em geral, e no Nordeste, em particular.

Podemos dividir a história do Brasil em três períodos muito desiguais em termos cronológicos: o primeiro vai da chegada de Cabral em 1500 à instalação do governo geral em 1549; o segundo vai dessa época até a instalação da Corte Portuguesa no Brasil, no início de 1800; o terceiro daí até a Proclamação da República, em 1889.

A expedição de Martim Afonso de Souza (1530-1533), representou um momento de transição entre o primeiro e o segundo períodos. Por sua vez, D. João III decidiu-se pela criação das capitanias hereditárias (1532), num ato de Senhor Feudal. Como tal, o território do Brasil de então foi dividido - da fronteira atual do Estado do Maranhão com o Pará até Laguna, Santa Catarina, em 15 fatias que foram doadas a 12 figuras da Corte, os assim chamados capitães - donatários. Cada fatia tinha cerca de 250 quilômetros de largura e se estendia até o meridiano de Tordesilhas. Nesta divisão, portanto, não se levou em consideração à constituição geológica dos terrenos - cristalinos e sedimentares - em que eram esculpidas as respectivas bacias hidrográficas, abundância permanente ou escassez periódica de água, nem as condições de uso pela população nativa.

A partir da segunda metade do século passado, assiste-se, no Brasil, uma verdadeira explosão populacional nas cidades. Conforme o Censo do IBGE de 2000, cerca de 81% vivem nas cidades. Os seus quadros sanitários vexatórios são bem ilustrados pelo fato das enchentes dos rios que afetam as cidades afogarem as pessoas e estas sofrerem, ao mesmo tempo, com racionamentos de água. Além disso, a forma pouco eficiente da oferta de água pelas empresas é bem ilustrada pelos índices de perdas totais que variam entre 40 e 60%, 64% delas não coletam sequer os esgotos domésticos que geram, falta de atuação de uma engenharia de planejamento, sobretudo, sensível a partir da década de 1970.

Um número crescente de casos positivos nos países desenvolvidos, principalmente, mostra que as águas subterrâneas, quando captadas de poços controlados - bem construídos, operados e abandonados - e não mais de buracos de onde se extrai água, são a alternativa mais barata de abastecimento humano, pelo menos. Além disso, a experiência já obtida neste contexto mostra que a idéia de combater escassez local e ocasional de água aumentando a sua oferta, sem qualquer questionamento aos grandes desperdícios e degradação da qualidade em níveis nunca imaginados é uma forma dos Senhores das Águas poderem continuar prestigiando as oligarquias políticas, financeiras e de serviços.

Para tanto, torna-se necessário que políticas públicas de Estado - cujos prazos são de 10, 20, 30 anos - substituam as políticas públicas de governo que visam, fundamentalmente, a reeleição dos poderosos de plantão. Além disso, as políticas públicas de recursos hídricos (Rio-92), por serem mais novas, 20 anos, pelo menos, diferentemente das políticas ambientais (Estocolmo-72), necessitam, cada vez mais de uma ação cidadã. O que não se pode é continuar atribuindo enchentes ou escassez periódica de água ao humor dos Deuses, dos Homens ou dos “Poderosos” de plantão. Para tanto, todavia, se reza muito e se faz procissões para que as chuvas caiam nos lugares certos.Vale destacar que analisando os quadros sanitários nas cidades, as Nações Unidas (2003) verificam que a universalização dos serviços – mais de 90% da população abastecida de forma regular e 80% com esgoto coletado e tratado, antes de lançado num rio, por exemplo - somente é encontrado nos países com PIB anual per capita superior a US$ 20.000,00.

Aldo da C. Rebouças
Prof.Titular Colaborador Inst.de Geociências, Pesquisador Inst. Estudos Avançados-Universidade de São Paulo, Consultor Secretaria Nacional de Recursos Hídricos

 
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