Os refugiados da água

por Mohamed Sid-Ahmed

A Humanidade está ameaçada por um novo desafio: a escassez de água. Apesar de a água cobrir quase dois terços da superfície do planeta, a escassez de água tem sido apontada como um dos dois mais preocupantes problemas para o novo milênio, sendo o outro o aquecimento global. De acordo com o relatório publicado pelo World Resources Institute (WRI) por ocasião do Dia Mundial da Água, que foi celebrado em 22 de março do ano passado, espera-se que mais do que a metade dos 6,5 bilhões de pessoas do mundo sofra de escassez de água até 2025. Mais do que um bilhão de pessoas no mundo já não têm acesso a água segura e a crescente crise de água não está apenas se tornando uma principal fonte de fricção entre nações mas espera-se que desperte um novo fenômeno à medida que milhões de pessoas em países em desenvolvimento são forçadas a migrar em busca de água limpa. Esses refugiados da água certamente custarão não mais do que os refugiados econômicos e políticos que, em face dos limites legais de seu acesso a sociedades desenvolvidas, encontram meios ilegais de entrada, com conseqüências freqüentemente desastrosas.

A demanda por água, que é um recurso finito, está rapidamente esgotando o suprimento. Por uma série de razões (má administração dos recursos hídricos, aumentos da população, ineficiência e desperdício de água em irrigação), o consumo global de água cresceu 6 vezes entre 1990 e 1995. O Dia Mundial da Água chamou a atenção sobre o déficit de água global e sobre as regiões do mundo mais afetadas pela escassez de água. Entre as estatísticas alarmantes incluídas no relatório do WRI está a de que no século XX a média de consumo de água no mundo elevou-se em mais do que o dobro da média de crescimento populacional, enquanto a decrescente quantidade de água disponível está ameaçando a elevação do preço dos alimentos acima dos recursos de mais de um bilhão de seres humanos. Sociedades desenvolvidas serão capazes de superar a escassez de água pelo consumo racionalizado, mas isso não se aplica a países mais pobres.

Esse relatório do WRI coincide com outro, publicado pelo Programa Ambiental das Nações Unidas (UNEP), que estima que uma pessoa em cinco no mundo não tem acesso a água potável segura, uma em duas não têm saneamento e 3,2 milhões de pessoas morrem todo ano com doenças relacionadas a água. O relatório também alerta para uma demanda global pelo aumento dos suprimentos em queda, o potencial para crescentes conflitos em diferentes cantos do mundo e identifica 300 possíveis pontos de deflagração. A situação não é melhorada pelo fato de que dois-terços dos grandes rios e lagos no mundo são compartilhados por mais do que um Estado.
Ainda mais: a água doce é distribuída desigualmente pelo mundo. Trinta e quatro países bem aventurados (Brasil, Canadá, Colômbia, E.U, Índia, Indonésia, Rússia e União Européia) compartilham dois-terços dos recursos de água potável. De acordo com o relatório da UNEP, a super-exploração dos rios e águas subterrâneas, a poluição, desperdício, crescimento populacional e o desenvolvimento errático das cidades são todos fatores que têm contribuído para a presente escassez de água, reduzindo sua disponibilidade per capita anual a menos do que mil metros cúbicos para 250 milhões de pessoas em 26 países, assim gerando um mamute sedento que se estenderá a dois terços da população do mundo até 2025.

Já 20 milhões de pessoas em seis países da África central e ocidental estão sofrendo severa falta de água porque o Lago Chad reduziu-se a 5% de seu tamanho inicial em menos de 40 anos. Dois terços das cidades chinesas sofrem séria escassez de água. E especialistas temem que 60% completos dos habitantes rurais do Irã serão forçados a migrar por causa da seca.

Espera-se que a quantidade de água necessária para produzir alimentos para a população do mundo em 2025 aumente em 50%. Por causa da seca generalizada, a produção de alimentos do mundo deve decair em 10%. O aumento nos preços das cestas básicas poderia expor 1,3 bilhões de pessoas à morte ou fome.

Há muitas razões para a crise, incluindo a má administração dos recursos hídricos por países em desenvolvimento, aquecimento global, secas que trarão ainda maior desmatamento e a depredação dos suprimentos subterrâneos. Alertando que a proporção dos dois quintos da população do mundo agora já passa falta de água se elevará a dois terços até 2025, o relatório recomenda que a crise de água mundial receba grau máximo na agenda da Cúpula Mundial sobre desenvolvimento sustentável que acontecerá no próximo ano.

Entretanto, o lembrete do relatório da UNEP, de que temos apenas um planeta interdependente para compartilhar, parece ter caído em ouvidos surdos em Washington, onde Bush primeiro renega sua promessa eleitoral de aprovar legislação limitando as emissões de gás de efeito estufa, e depois, para a surpresa e desânimo do resto do mundo, recusa-se a ratificar o Protocolo de Kyoto sobre aquecimento global. O novo presidente americano tem, assim, exposto não apenas os E.U., que produz um quarto das emissões do mundo, mas a biosfera do planeta todo a mudanças climáticas com um impacto direto sobre a crise da água. Enquanto as temperaturas sobem, as capotas polares do Ártico e Antártica derreter-se-ão, causando a elevação dos níveis do mar e oceanos e outras complicações relativas à equação da água mundial, através da exposição da água doce à infiltração salina e encorajando massas de êxodo de regiões ameaçadas pela seca para regiões com mais água.

As razões para migração de um lado para outro do globo aumentam. Temos visto como as imigrações de Zionistas para a Palestina deflagrou um dos mais virulentos conflitos do século XX. Na era da globalização, o deslocamento de massas, numa escala sem precedentes, está ocorrendo em diversas direções. A deterioração da situação da água deve ser seguida não apenas pela escala global, mas também pela regional, especialmente a dos desertos estendidos aos países árabes, tornando-os particularmente vulneráveis em condições de seca generalizada. Israel tem tomado medidas para impedir o impacto da falta de água em seu futuro. Está conduzindo pesquisas sistemáticas para reduzir os custos de dessalinizar a água do mar e torná-la de uso econômico para a região. Estes esforços não são apenas por interesses econômicos e comerciais, mas também têm objetivos políticos e de segurança.

Um avanço tecnológico neste setor poderia aumentar seu poder de barganha na região como um todo. Está para ser lançado um super-projeto de dessalinização que poderia abranger desde o Golfo até o Atlântico, incluindo todos os desertos árabes. Gostemos ou não, podemos nos encontrar em face de um monopólio sobre a produção de água potável a preços econômicos, graças ao conhecimento detido por Israel. Escassez de água poderia se tornar uma arma pela qual Israel poderia impor sua vontade sobre vastas áreas de território árabe.

A dimensão da água está introduzindo o conflito árabe-israelense num novo estágio, com parâmetros muito diferentes dos anteriores - um estágio que não será limitado à Palestina e terras árabes vizinhas, mas será estendida à distância dos desertos árabes. Isto os coloca diante de novos desafios que levam a novas abordagens. Ao invés de deixar que estes novos desafios determinem nosso futuro, devemos desenvolver projetos de dessalinização nossos, nos mesmos moldes que projetos para estabelecer redes de transmissão de eletricidade e de sistemas de oleodutos e gasodutos que assegurarão o benefício destas riquezas em condições otimizadas. Isto estaria de acordo com a implementação das resoluções da Cúpula de Amam, apelando pela interconexão dos países árabes de diversas maneiras.

Colocar o desafio na ordem do dia, não apenas impedirá Israel de impor sua hegemonia nestes campos, mas frustrará suas tentativas de mostrar que as mais agudas contradições na região são entre árabes, e não entre árabes e israelense. Se for verdade que a paz não pode ser alcançada sem uma medida de equilíbrio entre os protagonistas, é igualmente verdadeiro que o desequilíbrio não deve ser limitado ao campo militar, mas deve ser estendido a uma várias campos não-militares também. Em condições de escassez de água e severas secas, produzir água potável é uma ferramenta não menos eficaz para derrotar a supremacia do adversário do que as mais sofisticadas armas”.

 
Voltar Imprimir

Copyright © - Associação Brasileira de Águas Subterrâneas
Todos os direitos reservados