Seu Apolinário (A primeira impressão é a que fica)

Corriam os primeiros dias do segundo semestre de 1980 quando nos instalamos em Taperinha. Em que pese a complexidade hidrogeológica local recomendasse uma mudança quase de mala e cuia, um mês de árduo trabalho diuturno extrapolou as mais pessimistas expectativas.

Iniciante no ofício do qual ainda hoje me ocupo, decidi não arredar o pé, do pé da obra. E foi agarrado a esta determinação que firmei acampamento à sombra de um encorpado pé de mangueira circunscrito pelo canteiro-de-obra. Se minha intenção era dar o pontapé inicial para um pé-de-meia na profissão – ilusão que ainda nutro! – não vem ao caso. Antes de tudo eu buscava um bom trabalho. E obtidos bons frutos, digo, boa água, sem ousar ser a palmatória do mundo eu repararia erros de um passado bastante dilatado. Eu ajudava a proporcionar um futuro mais digno a uma comunidade tragada por um longo penar. Haja vista que Taperinha nascera, crescia, e em face do insucesso de um par de perfuradores, envelhecia entregue às agruras da própria sina. Tudo culpa de empreiteiros, que se não os digo incompetentes; que tal, sem escrúpulos? Uma vez embolsada a grana, haviam abandonado a obra em estado inacabado, e lançado crianças e mulheres de Taperinha a fatigar o corpo e a esgotar os ânimos; a engrossar o cangote e a tornear as pernas no descer e subir ladeira com balde d’água na cabeça. Pois se você não sabia desinformado leitor, saiba agora: é sobre os ombros daquelas que por aqui pesa esse tipo de omissão do poder público. Se os governantes não fazem o dever de casa, cabe às mal-alimentadas mulheres e às desnutridas crianças, a difícil tarefa de suprir com o mais precioso líquido, as vitais necessidades hídricas da própria família.

Era pois, movido pelas melhores das intenções que eu me encontrava naquela nublada manhã do segundo dia de nossa chegada à vila. E como se não bastassem, o frio e a garoa – que por si sós me esfolheavam a pele, rachavam-me os lábios e me cruzavam os braços –, de quando em quando a insistente brisa era atropelada por um cortante pé-de-vento que açoitava sem pena nem dó a copa das árvores e envergava o caule das palmeiras. Árvores estas, nativas e abundantes na cuesta serrana voltada para a Meca de nosso Cariri cabeça-chata. A alguns quilômetros dali, por detrás da zona urbana e ora com contornos pouco nítidos, erguia-se a Serra do Horto. No alto daquela extrusão granítica em formato de cuscuz gigante – na verdade, um batólito – de braços abertos, e mais nebuloso ainda, o Padim Padre Ciço contemplava a cidade que emancipada e tornara nacionalmente conhecida. A imponente envergadura do segundo maior monumento do Brasil e terceiro do planeta, revelava ser o padroeiro de nossa Juazeiro, completamente rebelde aos humores do tempo, refratário às oscilações meteorológicas.

Ainda que fosse o início dos trabalhos, a perfuração já avançava em marcha lenta, tal era a dureza da Formação calcária. E isto me deixava a cavalheiro para, apesar dos 20 metros que nos separava, eu exercitar meu hobby predileto. Com um olho na carne e outro no urubu, eu podia perfeitamente dimensionar as virtudes dos escondidos daqueles panos. Foi por este tempo que também entrou no meu raio de visão, o protagonista deste texto. Arrastava-se apoiado numa bengala. O fardo dos anos que lhe arqueava os ombros; tornava-o um nítido representante das limitações físicas impostas pelo tempo. Posto que claros se faziam os indícios de um quadro característico de artrite, artrose, reumatismo e outras doenças degenerativas que afloram naturalmente com os anos vividos. Enfim, um dos mais autênticos exemplares do padecer do corpo, e quem sabe, também d’alma.
Parou ao meu lado, curvou-se ainda mais sobre o braço que tinha como prolongamento a bengala, e com a natural lentidão que lhe era própria, escorou a frágil e trêmula mão esquerda numa das estacas que dava sustentação à lona do abrigo. Tinha a respiração ruidosa, dispnética, ofegante. Em nada me atrapalhou a falta do afiado faro dos médicos: ele padecia sim, também de asma. Contudo, instante depois o intruso dilatou as esbaforidas narinas e o diafragma, e ainda que limitado, face às restrições da quase falência múltipla dos órgãos respiratórios, aduziu oxigênio aos caóticos pulmões. Aí, em parte recuperado o fôlego, desatou a conversar. Desejou-me bons-dias, apresentou-se e cobrou detalhes do andamento dos trabalhos e dos passos seguintes. Em seguida desejou saber quando se daria a conclusão e que características construtivas e hidráulicas projetávamos para o poço. Na medida do possível, satisfeita essas curiosidades, passou a se insurgir por minha intimidade. Julgava-se, por certo, detentor de uma amizade que ao meu ver sequer engatinhava.

— Embora não seja de meu agrado emburacar na vida de seu ninguém, acabei por observar que o doutor é dos meus. E se o amigo me parece boa praça, me enxergo no dever de alertá-lo para o caso em questão. Que a dita cuja ali é apetrechada de um pé-de-rabo de tirar o fôlego, é fato que não posso esconder. Aliás, aqui pra nós, estou por ver peça tão bem acabada! Mas... Bem, digo isto com a autoridade de quem nos outroras da juventude, nos recuados da mocidade não se fartava em apenas espichar olho grande para as partes desguarnecidas de um avantajado de trás e de um par de crescidos da frente. Pois bem, já que o amigo é do ramo e vejo que anda assoberbado de más-intenções, saiba antes de se aventurar em vasculhações mais profundas que nos entrementes do caso outros considerandos devem ser considerados [...].

Não foi preciso eu lançar vista ao destino apontado por seu Apolo. Estava claro que ele se referia àquela que, momentos antes de eu ter a atenção desviada por ele, atraía meu melhor rabo-de-olho. À época, uma visão exemplar: livre de miopia, isenta de astigmatismo, limpa de glaucoma. Plesbiopia – a famosa síndrome do braço curto – nem pensar!

Enfim, alguém capaz de ressuscitar ímpeto de adolescente, em servidor público reprovado pela compulsória. Tal era o acabamento do conjunto da obra. Proeminente na dianteira e abundante na retaguarda. Tudo, harmoniosamente conectado a uma delgada cintura e montado em pernas fornidas. E da repartição subalterna ao departamento superior: longos, volumosos e cacheados cabelos negros emolduravam-no o rosto moreno-claro. O qual era ornado por um par de grandes olhos castanhos, nariz afilado, lábios carnudos, dentes especialmente alvos e um sorriso fácil. E por falar em sorriso, que quando ria, riam juntas duas covinhas. Uma em cada face.

A partir daquela manhã – como quem não queria nada mais além de saciar a curiosidade despertada pelos serviços, porém acabava por ressuscitava apetites adormecidos –, não raro, o descrito monumento à beleza dava charme à obra. Um dia ou outro que lá não deu o ar de sua graça, levou a equipe (oito marmanjos todos ávidos por um bem de consumo à altura de seu quilate), a um desânimo de dar dó. E no dia seguinte, enquanto ela não fizesse a leiga supervisão, tudo emperrava. Enfim: tornou-se nossa mascote no tocar aqueles serviços.

Mas mudando um pouco de assunto, eu vinha de concluir, dias antes, a segunda leitura da obra-prima que é o “Coronel e o Lobisomem”, do extraordinário imortal José Cândido de Carvalho. Assim sendo, à medida que seu Apolo evoluía no discurso, mais e mais semelhanças deste com o neto de Simeão me saltavam à vista. Diga-se à guisa de esclarecimento, similitudes restritas ao campo da oratória. Em especial no tocante ao proceder e à forma vantajosa de expor o passado, de relatar o presente e também de projetar o futuro de sua estendida existência. Pena que por pura falta de espaço neste ABAS, a constatação de tudo isto o amigo leitor e leitora amiga só terão nos próximos informativos.

O que não me impede de fechar este artigo lhe adiantando que no tocante ao passado de seu Apolo – em que pese ele tentasse pintá-lo com matizes sombrios –, não foi preciso eu judiar de meus neurônios para deduzi-lo sortido de fracassos. E o futuro... Bem, por seu futuro respondia a própria decadência física, uma vez que contra seus audaciosos planos futuristas, jogava a decrepitude escanchada sobre os próprios ombros...

Bernivaldo Carneiro
Geólogo / sanitarista da FUNASA/CE e escritor
hidrogeologia.funasa@bol.com.br

 
Voltar Imprimir

Copyright © - Associação Brasileira de Águas Subterrâneas
Todos os direitos reservados