Seu Apolinário (Era de fato um homem doente)

A caminho da Capital, eu abastecia o carro na saída de Barbalha, quando, montada em escárnios, chegou-me a notícia da forma nada convencional com que ele concedera ao corpo, o descanso dos sete palmos. O velho e gasto peito havia sucumbido à carga de emoção quando seu Apolo convertia o aposento do mês em afetos do meretrício.

“Mas logo hoje!, exato agora que ele parecia bem das pernas e melhor ainda dos pulmões!...”. – E como obrigações outras, afastavam-me do funeral, meu pesar se ocupou das lembranças. Principiei com a despedida na manhã daquele dia: – “Quando eu retornar da cidade do Crato, para onde estou descendo agora, o doutor já deve ter levantado acampamento; de forma que...” – Em síntese: foi generoso nas palavras e caloroso no abraço, e quando finalmente disse adeus, deixou-me a dimensionar o quanto, aqueles trinta dias de descida ao local do poço e subida de volta a casa, haviam-no resultado, benéficos. De farto o corpo parecia ligeiramente desempenado e a respiração soava mais livre e harmônica.

Além do que, nossa prosa diária – por vezes à toa – das 9 às 11h45, ensinara-me não existir espírito reservado que resistisse à cumplicidade de seu Apolo. Sua alma expansiva havia forçado as comportas de minha introspecção e dela vazado, ocorridos que teciam minha pacata vida pregressa. Quero dizer: ele acabara por saber um pouco de mim, e eu, bastante dele. Sua palavra amiga – quase sempre em moldes paternais –, e dita com o particularíssimo estilo que é do conhecimento dos leitores desta coluna; havia conquistado este articulista. Pois não fora só uma nem duas vezes que ao me ver cabisbaixo, recorrera aos conselhos. Recomendou calma, exigiu-me paciência. – “Sem querer desmerecer sua bravura, o doutor deve ter sempre em mente que amanhã é um novo dia e tudo se resolverá. No final tudo dá certo e se não deu certo ainda é porque ainda não chegou ao final”...
E foi assim, ministrando os ensinamentos dos anos vividos, que ele acompanhou pari passu esses e outros contratempos:

a) A pescaria de uma coluna de 180m de hastes de 4½” e uma broca de 10”, abandonas no furo – então com 265m de profundidade – por um rebelde toll joint que, por conta e risco próprios, livrara-se do respectivo encaixe

b) Três infrutíferas tentativas de descida do revestimento, que em virtude da expansão litológica das camadas penetradas e do conseqüente estrangulamento do poço, só nos permitiu tal instalação depois de passada e repassada a broca final com circulação de inibidor de argilas incorporado ao fluido de perfuração; e,

c) As dificuldades, para – face à grande profundidade do nível estático e, por vias de conseqüência, o baixo porcentual de submergência – desenvolver-se o poço com Air lift.

Mas deixando de lado os problemas e volvendo às nossas conversas, recordo como se ocorrera ontem – o dia foi o seguinte ao que nos conhecemos –, quando ele fazia apologia a seu compulsivo gosto por uma bem-moldada mulher e de súbito:
— Mas quantos filhos mesmo o senhor tem, seu Apolo?
— Nenhum!
— Nenhum?!
— Quero dizer, nenhum oficial. É que eu nunca disse sim em altar de padre nem em comarca de juiz. Enquanto que na polícia!... Até perdi a soma das vezes que por um triz não me vi enrolado com a justiça. É que gente besta não conta os xodós que tive, e aí... o moço sabe como é que é. Desaparelhado de preconceito como sempre fui, bastava ser mulher. Quero dizer: basta! Do jeito que eram de meu agrado, as loiras, não me desgostavam as morenas; o mesmo apetite com que eu dividia a cama com as mulatas, eu também deitava com as ruivas... Era assim: rabo-de-saia deu sopa, eu traçava. E todas davam. É como sempre digo, seu doutor, o cabra tendo dengo e ginga malandra o caquiado sai perfeito. A mulher fica freguês. E neste particular não conheço sujeito tão escolado quanto Apolo Pacífico Guerra. Empurrado por minha competência de nascimento, madruguei no praticar o legado da vocação e no aperfeiçoar a aptidão herdada. Saiba que eu não passava de um mero fedelho quando estagiei em porta-aberta de mulher-dama. E foi tiro-e-queda: estagiei e tomei gosto pelo ofício. Nunca mais, homem seu menino, dispensei um bom chamego em ambiente de sem-vergonhices. Agora sempre atento às boas normas da prevaricação. Pois, para que um bom libertino ande forrado de razão e faça jus ao título que tem, deve sempre andar sobrecarregado de respeito às leis da devassidão. E assim logo fiquei perito nas disciplinas que versam sobre os gostos femininos. Logo deduzi que nada é mais importante para a mulher, que antes dos finalmente, um estendido plantão de segura-embaixo-e-aperta em cima. De forma que nem mesmo os ímpetos e vigores da pouca idade me fizeram meter os pés pelas mãos. Daí eu reforçar o que disse com outras palavras: do jeito que o mundo anda perdido, pode até ainda aparecer um igual; porém nunca mais praticado que Apolinário Pacífico Guerra no dar e tirar os proveitos da cama, dos travesseiros e lençóis de mulher-desonesta. Agora casar... casar mesmo; eu nunca casei. Se existe uma coisa que nunca foi do agrado deste seu amigo velho, é ter mulher enrabichada em meu calcanhar. E montada nas leis dos homens ou acobertada pelos mandamentos dos céus, nem pensar! De maneira que de uma coisa eu advirto o doutor: se seu currículo ainda não registra essa vivência, fique certo de que casar nunca foi um bom negócio para homem nenhum. Mal acaba a lua-de-mel e o cabra já tá mais farto da criatura que caminhoneiro depois de engolir um rodízio de empanturrar uma dúzia de tigres. O venha cá minha nega, o acorda para chamegar, meu amor se transformam em acorda mau-humor, vai trabalhar vagabundo!

Mas falando assim até parece que eu... Não! Não é nada disto. E para o doutor não maldar besteiras, acrescento: se Deus criou bicho melhor que mulher, Ele trancou a sete chaves e sepultou em cova funda. Pois, pelo menos para mim, mulher é a melhor coisa do mundo. Isto é, ela em seu lugar e eu em meu cantinho. Junto mesmo só naquelas horas. De modo que mesmo estropiado pela vida e com as forças minguando, duvido haja um comedor de rapadura com mais competência que eu para deitar visão dilatada sobre um vistoso amassador de sofá, e dele tirar as melhores vantagens. E por falar nisto... Sei que por estes tempos o doutor ainda não precisa; o que não significa dizer que deva desprezar. Bom, mas isto é um assunto que fica para depois. Por enquanto basta o moço saber que é uma receita de minha safra de invenções e que tem a rapadura e o piqui como afrodisíacos básicos. Um depurativo da alma; um revigorante do físico. Poderoso, mas tão poderoso a ponto de deixar doutor médico, farmacêutico formado, e outros metidos a sabedor da matéria; de queixo caído. Pois é de ressuscitar artefato, há tempos esquecido das alegrias da vida. É de tornar brocha, mais atirado que pai de chiqueiro em pasto de cabrita nova.

Pois bem, mas de volta ao assunto de antes, também está pra nascer quem tenha olhar mais apurado que o meu no apreciar, e competência mais libidinosa no fazer uso de um platibanda apetrechado de um fornido par de mimosos. Porque comigo não sobra parte nenhuma na mulher que não deva ser admirada. E se alguém acha isto um exagero, eu garanto a veracidade do que digo jurando pelo que há de mais sagrado. Saiba o doutor que basta, eu farejar um rastro de sete dias para dimensionar as virtudes de um rabo-de-saia sortido de um bom avantajado. E depois de uma boa talagada de minha fortificante garrafada, em matéria de estripulias na arte da vadiagem, o bode velho aqui bota muito aspirante a pai de chiqueiro, no chinelo. De sorte que como o doutor só tá chegando, ainda vai ouvir de bocas neutras e dessassustadas no salvar a honra de quem tem, a fama de mulherengo juramentado deste seu Apolo. É atuação de muito falar. Acontecidos que para demandar parecer exige tempo estendido em conjecturas diurnas e cogitações noturnas de desembargador versado no assunto. É matéria de fazer o mais competente dos praticados em casas-de-porta-abertas, perder o sono no debelar surpresas e deliberar jurisprudência favorável a Apolinário Pacífico Guerra.

 
Bernivaldo Carneiro
Geólogo / Sanitarista da FUNASA/CE e escritor.
hidrogeologia.funasa@bol.com.br
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