O bolero de Ravel

Que diabo tem o Bolero de Ravel a ver com águas? Nada, na verdade. O compositor, também, que eu saiba, não foi nenhuma hidropersonalidade (como diz o Giampá). Mas como o caso se passou numa aula de Engenharia Sanitária, vou contar. Proporcionei aos meus alunos a exibição de um vídeo, destinado ao curso de administração, sobre a organização de um projeto e a colocação em atividade de uma tarefa. No vídeo essa tarefa era a execução, por uma orquestra, do Bolero de Ravel, mas servia de exemplo para qualquer outra tarefa organizada, como a que eu tinha em vista, que era o planejamento da operação e manutenção de um sistema de abastecimento de água para uma municipalidade, cuja captação era uma bateria de poços profundos.

O vídeo, muito interessante, descrevia todas as fases da preparação, desde o início, com esquemas, organogramas, cronogramas, PERTs, CPMs , procura e contratação de músicos e maestro, ensaios e, finalmente, a execução final pela orquestra num teatro. Na reunião inicial dos organizadores com o maestro contratado, Zubin Metha, foi-lhe dito que a composição escolhida havia sido o Bolero de Ravel. Zubin pôs as mãos à cabeça, no maior desânimo:

- Não, outra vez o Bolero de Ravel? Não, pelo amor de Deus, não o Bolero de Ravel! Não agüento mais!

Não se condoeram. A seguir o vídeo mostrava os músicos chegando para os ensaios, com roupas comuns de todo dia, alguns com camisetas e bermudas, mal penteados, mastigando sanduíches, com caras de sono, carregando os próprios instrumentos, destoando da solenidade da execução final. Entrevistados, explicavam as suas partes no esquema, desde as reuniões iniciais, as contratações, a afinação dos instrumentos, os ensaios, as execuções dos trechos, várias vezes repetidas pelas ordens do exaltado e vociferante maestro, a primeira execução da peça toda, ainda na fase preparatória e, no final, a solene execução num famoso teatro europeu.

As turmas de Engenharia Sanitária eram pequenas e havia apenas seis alunos na assistência ao vídeo. Durante a exibição fui procurando explicar o que havia de comum entre a organização de uma apresentação musical e o planejamento e operação de um sistema de abastecimento de água. Não foi uma tarefa fácil. Realmente, acho que foi muito mal sucedida. Não obstante, não desisti, como bom brasileiro. Perguntados, responderam que nunca haviam assistido a uma execução de peça sinfônica nem nunca tinham ouvido o Bolero de Ravel nem ido a teatros nem nada, como bons alunos de engenharia.

No início, prestaram relativa atenção, pouco interessados na explicação dos diversos planejamentos e tarefas, sua ligação com a administração de uma atividade, as partes chatas da coisa, distraindo-se com outros assuntos, também como bons alunos de qualquer especialidade. A atenção aumentou quando se iniciou a execução final do Bolero no teatro. Percebi que estavam admirados com a solenidade do ambiente, a arquitetura da sala, a beleza do espetáculo, o andamento todo peculiar da peça musical. Em particular, fiquei observando um dos jovens. Boquiabriu-se, literalmente. Estático, olhos fixos, ouvidos ligados, acompanhou maravilhado o bom e velho Zubin exigindo sangue, suor e lágrimas de seus comandados, a música impressionante, coisa nunca vista nem ouvida.
Quando a orquestra chegou ao estrondeante acorde final, com o maestro descabelado e suado fazendo seus gestos desesperados, num crescendo e, depois, numa solene postura hierática, o aluno não agüentou. Levantou-se da cadeira, deu um pulo para o alto, um soco no ar, estilo Pelé 70 e gritou, berrado, entusiasmado, maravilhado, o grande palavrão da língua portuguesa:
- P... que o p.......!!!

Mas com as palavras completas, com todos os fonemas.

Engenheiro Euclydes Cavallari
(11) 3031-6473
alicecv@uol.com.br

 

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