Relembrando...

José Vicente Faria Lima. O Brigadeiro da Aeronáutica. O da Avenida. Foi secretário de obras do governo estadual paulista de Jânio Quadros e, posteriormente, prefeito de São Paulo. Um dos braços direitos de Jânio. O outro braço direito foi Carvalho Pinto. Como secretário costumava freqüentemente visitar as obras sob sua administração, levando consigo os diretores dos Departamentos responsáveis pelas diversas áreas. Do DOS – Departamento de Obras Sanitárias – era diretor Geral o Garcezinho, João Moreira Garcez Filho, não parente do Lucas, o qual tinha medo de viajar de avião. Numa das visitas, a Presidente Prudente, designou-me seu representante. Fui. Partimos de Congonhas num dos velhos DC3 da Vasp, então propriedade do governo do Estado, às sete horas da manhã, que militar tem mania de acordar cedo. Os que estão na minha faixa etária devem se lembrar daqueles bimotores a hélice que desenvolviam quase trezentos quilômetros por hora, eficientes e seguros. Não caiam.

Assim que levantamos vôo, Faria Lima, que estava sentado com os passageiros, levantou-se e dirigiu-se à cabina. Dela saiu daí a pouco o comandante anunciando que lhe havia passado o comando. Sentou-se conosco e logo pegou no sono. A viagem decorria tranqüilamente. Estava um céu de brigadeiro. Lá pelas tantas um colega foi acordar o comandante:

- Que foi? Que aconteceu? – Preocupado e estremunhado.

- Comandante, já passamos Presidente Prudente há uns dez minutos. Vi o nome no telhado de um armazém.

O comandante foi à cabina. Daí a pouco o avião inclinou-se suavemente, baixando uma asa e elevando a outra, executou uma longa curva de cento e oitenta graus e voltou, tomando o sentido de Presidente Prudente, em cujo aeroporto aterrissamos, cerca de quinze minutos depois. A primeira visita da comitiva, constituída por nós da Secretaria e pelos prefeitos e vereadores da região, foi à estação de tratamento de água da cidade, obra do DOS. Fiquei ao lado do brigadeiro, respondendo as perguntas que fazia. Ele tinha fama de mal educado, tanto que seu apelido era Pégaso, o cavalo voador. Mas só destratava os que não sabiam responder adequadamente as suas perguntas. Seus subordinados aprenderam a dar qualquer resposta, quando não a sabiam, confiando no conhecimento técnico dele, que não era lá essas coisas. Uma dessas respostas foi-lhe dada pelo Maury de Freitas Julião, quando Faria Lima foi prefeito de São Paulo. Visitando a obra da galeria subterrânea para pedestres, na rua da Consolação, aquela em frente ao cine Belas Artes, perguntou:

- Engenheiro, porque estão revestidos com azulejos apenas o chão e as paredes laterais e não o teto?

Sem fazer a mínima idéia do porquê, Julião, que era o secretário de obras da prefeitura, inventou:

- Sabe, brigadeiro, é porque esta rua é muito movimentada, o tráfego é pesado e os azulejos poderiam se despregar e cair na cabeça dos pedestres.

No mais, era extremamente educado, principalmente com os prefeitos do interior, nunca os fazendo esperar em seu gabinete, recebendo-os pessoalmente, sem mandar um contínuo introduzi-los e tratando-os por Excelência.

Apontando para o Parshall, perguntou-me, já meio contrariado:

- Engenheiro, veja essa água suja aqui na estação. O que é isso?

Felizmente eu sabia a resposta.

- Não há problema, brigadeiro. Essa é a água que chega da captação, trazida pela adutora. Está impotável, mesmo. Agora é que vai começar a ser tratada. O senhor deve ver a água que está lá no reservatório final, já pronta para a distribuição.

A próxima visita foi à penitenciária, ainda em obras. O Diretor Geral do DOP – Departamento de Obras Públicas – responsável por elas, escoltou o brigadeiro. Vendo uma pilha de azulejos brancos, que lhe pareceram de alta qualidade, Faria Lima perguntou, já meio irritado:

- O que é isso, engenheiro?

- São azulejos destinados ao revestimento dos sanitários e banheiros, secretário.

Aí ele estourou.

- O quê? Excelentes azulejos brancos para presos? Não senhor. Uma caiação de uma demão já é demais. Use esses azulejos nas obras da escola!

Terminadas as visitas seguiu-se uma audiência do secretário e diretores dos departamentos com as autoridades municipais da região. Reivindicações foram ouvidas, anotadas e várias prometidas. Após o longo almoço, estava programada a volta para São Paulo, mas um dos prefeitos insistiu com o brigadeiro para que fosse à sua pequena cidade, onde os munícipes haviam preparado uma condigna recepção. Jamais se negando a um pedido de prefeito, Faria Lima foi. O aeroporto onde nos dirigimos para aguardar, ainda estava em obras. A pista já havia sido asfaltada, mas não sinalizada. Não tinha faixas de cal nem olhos de gato nem luzes. Não havia energia elétrica em todo o aeroporto. Era necessário decolar antes de anoitecer. O comandante nos fez tomar nossos lugares no avião e ficou pronto para partir assim que o brigadeiro voltasse. O sol já se punha, avermelhando o horizonte, num belo espetáculo que não pôde ser devidamente apreciado, pela aflição da demora do importante passageiro.

Escureceu. O comandante saiu da cabine e estava anunciando que seria necessário adiar a viagem para o dia seguinte quando ouvimos o motor do carro do prefeito chegando e, logo após, Faria Lima entrou na aeronave. O comandante:

- Brigadeiro, adiei a viagem para amanhã. Não dá para decolar de noite.

- Coisa nenhuma! Saia da frente e deixe-me entrar na cabina.

- Não me responsabilizo.

- Sou seu superior hierárquico. Aqui quem se responsabiliza sou eu.

Daí a pouco os motores começaram a roncar. Acenderam-se os faróis da frente e apagaram-se todas as luzes de bordo. Os faróis iluminavam quando muito vinte metros da pista, à frente. O comandante, sentado conosco, não parava de fungar e resmungar. Notei alguns sinais da cruz no ambiente. O brigadeiro fez o avião ir um pouco à esquerda, até a lateral da pista. Depois à direita. Assim localizado, voltou para o centro dela. Literalmente, apalpou-a. Na direção correta, agora, acelerou. O avião ganhou velocidade, começou a levantar a roda de trás. As da frente ainda rolavam no asfalto recente, trepidante a aeronave. Escuridão total. Ninguém via nada. Nem o brigadeiro, creio eu, com aqueles faróis. Terminada a trepidação, o avião elevou-se, ganhou altitude e tomou a rota de São Paulo, numa suave curva. A proeza do brigadeiro foi saudada com imenso alívio e uma demorada salva de palmas e urros e uivos.

 

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