Aventuras em Borborema

BORBOREMA. Não a da Paraíba, a de São Paulo. Vale do Tietê, onde se caçavam jacarés para churrascos com molho de maracujá. Em tupi-guarani o nome significa “lugar sem pessoas, deserto”. Mas não indica nenhuma eventual característica do local. Os batizadores o escolheram pela sonoridade da palavra.

O então DOS – Departamento de Obras Sanitárias – implantou o sistema de abastecimento de águas da sede do município. Era engenheiro fiscal o Ectore Luiz Pannuti. Executor das obras, o engenheiro William Gamer. Projeto nosso.

Na ocasião o DOS estava começando a utilizar tubulações de cimento amianto, por economia em face do ferro fundido, para desespero dos fabricantes deste último.

Principalmente do irritado Barbosinha, da Ferro Brasileiro. Um dia foi falar comigo:

- Vocês não vão mais usar ferro fundido? Nossa empresa produz tubos de ferro fundido. Que faço? Fecho a fábrica?

- Ué, Barbosinha! Se vocês produzissem tubos de prata, teríamos de usá-los?

Reconheço que minha resposta não foi muito feliz, mas ficou por isso mesmo.

A captação foi executada com tubulação de drenagem em cimento amianto, perfurada, obtendo-se água do aqüífero freático, em linhas de espinha de peixe.

Prontas a captação, a adutora e a rede de distribuição, a Eternit do Carlos Kupper, fornecedora dos tubos, ofereceu uma festa de inauguração.

Seria no restaurante do Hotel Brasil, o melhor da cidade, na praça da matriz. Entenda-se esse “melhor”. Hospedados nele, chegados na véspera da festa, à noite, ao irmos dormir, Pannuti, Gamer e eu no mesmo quarto, topamos sob os lençóis com diversas enormes baratas que fugiram, tão assustadas como nós.

Pannuti: - Aqui não fico. Vou dormir na combi da Eternit.

Fomos os três. Quando soube, avisado pelo motorista, o Kupper foi nos buscar.

- De volta para o quarto, seus covardes. As baratas já fugiram. Não fica bem vocês não dormirem no hotel. O que o prefeito vai pensar?

Naquele tempo não existia a expressão “politicamente incorreto”.

Nas cidades do interior, na ocasião, ocorriam situações peculiares nos hotéis. Em São José do Rio Preto havia um, numa esquina da praça, num prédio em cujo térreo havia um cinema. Subia-se à recepção num velho elevador de porta pantográfica, lento, rangente e tremente. O curioso é que o banho não estava incluído na diária. Quando se ia pagar a conta para deixar o hotel – também não havia “check out” – o encarregado lançava em voz alta a embaraçante pergunta:

- O senhor tomou banho? Afirmativa a resposta, o valor correspondente era adicionado.

Felizmente, o restaurante do Hotel Brasil compensou na festa as baratas do quarto. Amplo salão, adequadamente decorado, tendo num canto a indefectível roda de madeira com as bandeiras espetadas, do Rotary Club, que lá se reunia, cozinha caprichada, excelente cerveja, a “Londrina”, que nunca mais encontrei. Até música ao vivo – acho também que não se chamava assim – de responsabilidade de um conjunto caipira – também não era horrivelmente “country” - especialmente contratado para a ocasião em Bauru. Antes da festa, à tarde, fomos visitar as obras. Nada se viu, evidentemente, porque em saneamento as coisas, em sua maioria, são enterradas. Principalmente rede de distribuição e drenos. Visível, apenas e emocionante, o reservatório de passagem que recebia as águas límpidas captadas. Mas todos gostaram. Todos eram: o prefeito da cidade, seu pai, vereadores, autoridades locais e de cidades vizinhas...

Pannuti me alertou: - O pai do prefeito está em todas. Prepare-se para discursar hoje à noite, porque ele preside a sessão e dá a palavra para todos os presentes.

De fato, foi assim. O jantar começou ao odor dos “opíparos acepipes” e ao som do conjunto.

- “Só me alegra quando canta, lá naqueles cafundó, é o nhambu chitã e o chororó...

A linda composição que batizou a famosa dupla “Chitãozinho e Chororó”. Londrina rodava livre. O conjunto, firme:

- “Tava drumino, acordei pensano: Ai!”.

Terminada a sobremesa, saborosos e caseiros doces caipiras, obras primas do próprio hotel, o prefeito pediu atenção. A custo fez-se silêncio e o conjunto deu seu último acorde:

- “Casá com intaliana gorda é muita imaginação. Caso co’a intaliana magra...”

Como era de se esperar, o prefeito passou a palavra ao pai que, por sua vez a passou para todos os presentes, começando com os participantes da mesa. Evidentemente, não me lembro dos nomes das autoridades, só guardei o do prefeito de Itápolis, pela sonoridade: “Tarquínio Bellentani”.

Antes de mim falou o Gamer, que mencionou o fato de eu ter sido o autor do projeto, coisa a que os poucos que ouviram não deram a mínima importância. O pai do prefeito então anunciou:

- Tem a palavra o engenheiro Cavalcanti, que construiu a rede de água.

Falei. Nem sei o que disse. Lembro que o pai me ouvia com toda a atenção, olhos fitos em mim, meio boquiaberto. Como, aliás, tinha feito com todos os que me precederam. Gamer me sussurrou ao ouvido:

- Ele é surdo.
Saímos de Borborema ainda de madrugada. Não fiquei sabendo se o banho estava incluído na diária, pois o tomamos no reservatório de passagem da captação, Pannuti, Gamer e eu, com sabonete e tudo.

Engenheiro Euclydes Cavallari
(11) 3031-6473
alicecv@uol.com.br

 
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