A
Dominialidade das Águas Subterrâneas
A Proposta de Emenda à Constituição
N° 43, de 2000 que “Modifica a redação dos artigos
20, Inciso III, e 26, Inciso I, da Constituição Federal,
para definir a titularidade das águas subterrâneas”
de autoria do Senador Julio Eduardo, protocolado em 21/11/2000 foi objeto
de uma tramitação que durou cerca de 1 ano, aguardando
inclusão na Ordem do Dia (pauta) para votação desde
13/11/2001. Passou pela Comissão de Constituição,
Justiça e Cidadania com aprovação da matéria
pelo relator Senador Lúcio Alcântara e um único
pedido de vistas do Senador Bello Parga. É, portanto, matéria
decidida e aprovada que deverá ser submetida à apreciação
do quorum regulamentar de 2/3 através de votação
democrática. Posteriormente deverá ser encaminhado à
Assembléia Legislativa Federal para discussão e aprovação.
Convém relembrar que o artigo 20, Inciso III, diz que são
Bens da União “os lagos, rios e quaisquer correntes de
água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de
um Estado, sirvam de limites com outros países ou se estendam
a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos
marginais e as praias fluviais”. Segundo o ilustre jurista Cid
Tomanik Pompeu, esta redação confere domínio à
União dos terrenos marginais e, praias fluviais de todos os rios
mesmo os estaduais, tendo em vista que tudo está inserido no
território da União e não há clareza no
texto descritivo.
Por outro lado no Artigo 26, Inciso I, está escrito que incluem-se
entre os bens dos Estados “as águas superficiais ou subterrâneas,
fluentes, emergentes e em depósito, ressalvada, neste caso, na
forma da lei, as decorrentes de obras da União”. Ou seja,
define claramente a dominialidade do Estado sobre as águas subterrâneas.
Na nova redação proposta para o Inciso III do Artigo 20
é definido que são bens da União “os lagos,
rios e quaisquer correntes de águas, superficiais ou subterrâneas,
inclusive os aqüíferos, em terrenos de seu domínio,
ou que banhem mais de um estado, sirvam de limites com outros paises,
ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem
como os terrenos marginais e as praias fluviais”.
Na nova redação proposta para o Inciso I do artigo 26
da Constituição Federal incluem-se entre os bens dos Estados
as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes
ou em depósito, circunscritas ao seu território, ressalvadas
neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União”.
Colocamos em destaque as modificações introduzidas que
parecem mínimas, porem transferem a dominialidade do Estado para
a União. De um lado a justificativa do relator afirma que a exegese
dos dispositivos constitucionais permite o entendimento de que se deve,
analogicamente, estender às águas subterrâneas o
critério de titularidade dominial fixado para as águas
superficiais. Com base nesse raciocínio, ao relacionar, no art.
26, I, entre os bens dos estados, “às águas superficiais
ou subterrâneas, fluentes, emergentes ou em depósito”,
a Constituição estaria atribuindo aos estados apenas titularidade
remanescente, a exemplo do que ocorre com relação ao outros
bens. Ou seja, pertenceriam aos estados as águas superficiais
ou subterrâneas que, circunscritas ao território de cada
um desses entes federativos, não estejam no domínio da
União.
Esse entendimento, entretanto, não é pacifico, sobretudo
quando se confronta o silencio constitucional relativamente à
inclusão das águas subterrâneas no rol dos bens
da União e a expressa menção a essas águas
no que se refere aos bens dos estados. Assim a emenda ora proposta se
destina a sanar a duvida jurídica e evitar conflitos de entendimento
que nada aproveitam ao adequado gerenciamento de nossos recursos hídricos.
Pretende-se aqui tão-somente estender para as águas subterrâneas
inclusive os aqüíferos, os mandamentos constitucionais relativos
“aos lagos, rios e quaisquer correntes de águas”.O
texto constitucional passaria a expressar o que hoje se lhe retira por
interpretação: pertencem aos estados as águas circunscritas
ao seu território; as que dele extravasam, inscrevem-se no domínio
da União. Ao definir, sem deixar margem de duvida, a titularidade
das águas subterrâneas, a alteração proposta
levará segurança jurídica e imporá responsabilidade
administrativa adequada ao gerenciamento dos recursos hídricos
e a outorga de direitos relativos às águas subterrâneas(parte
transcrita da justificativa do Relator).
O argumento contrário apresentado por defensores da manutenção
do status quo é de que se ocorrer a perda da dominialidade das
águas subterrâneas por parte dos Estados, para a União,
serão criados grandes dissabores aos órgãos gestores
estaduais incumbidos de conceder as outorgas das águas superficiais
e subterrâneas. Não se deve ignorar que alguns desses órgãos
têm se empenhado há muitos anos na tarefa de outorgar o
direito de uso das águas subterrâneas, criando simultaneamente
bancos de dados regionais, antigamente não existentes. Esses
bancos de dados têm sido ferramentas imprescindíveis ao
aprofundamento do conhecimento sobre os aqüíferos e sobre
a qualidade das águas neles armazenadas; por outro lado a questão
da outorga como simples ferramenta para arrecadação de
recursos financeiros nunca foi o objetivo das entidades estaduais e
não deve ser visto, portanto, como forma de arrecadação
pelo governo Federal. Outorgar o uso das águas subterrâneas
tem sido uma tarefa árdua, mas embora com todas as dificuldades,
as instituições responsáveis pelos recursos hídricos
têm conseguido cadastrar poços e informações
para o gerenciamento de aqüíferos. É difícil
crer que a centralização desta atividade no Governo Federal,
outorgando e fiscalizando o uso das águas subterrâneas
em todo o território brasileiro, seja possível de ser
realizada com a devida eficiência. Uma decisão desta magnitude
poderia representar um retrocesso ao conhecimento dos aqüíferos
no Brasil, com o risco de resultar, possivelmente, no retorno a clandestinidade
da atividade de perfuração de poços tubulares.
Em termos do que é denominado “aqüíferos transfronteiriços”
não se pode ignorar que existem diferenças entre o significado
“formações geológicas transfronteiriças”
e “aqüíferos transfronteiriços”. Sobre
esta questão, menciona-se a Formação Botucatu e
o aqüífero Botucatu (atualmente denominado de aqüífero
Guarani), bem como a Formação Serra Geral e as estruturas
aqüíferas do aqüífero Serra Geral. Essas diferenças,
baseadas em dados técnicos e científicos, são marcantes
em várias regiões onde os aqüíferos ocorrem.
Torna-se, portanto, necessário compreende-las e, somente a partir
desta compreensão, tomar as decisões sobre a dominialidade
das águas subterrâneas proposta no Projeto de Emenda Constitucional
ora abordado. É fundamental lembrar que os divisores de águas
subterrâneas nem sempre coincidem com os divisores das bacias
hidrográficas. Pela complexidade do assunto, não há
dúvidas de que as discussões sobre esse tema devem ser
aprofundadas e suficientemente amadurecidas, envolvendo toda a comunidade
técnico-científica, bem como os organismos estaduais responsáveis
pelo gerenciamento de recursos hídricos. O estabelecimento de
um amplo diálogo entre as partes interessadas evitará
equívocos que poderão se reverter em prejuízos
imensuráveis aos Estados do Brasil, ao próprio Governo
Federal, o que evidentemente, numa tomada de decisão inadequada,
representará um retrocesso ao conhecimento sobre a hidrogeologia
no Brasil (parte transcrita da manifestação da Associação
Brasileira de Águas Subterrâneas).
Outro parecer interessante foi apresentado pelo Instituto Mineiro de
Gestão da Águas – IGAM – à Câmara
Técnica de Águas Subterrâneas do Conselho Nacional
de Recursos Hídricos, o qual transcrevemos na íntegra,
para apreciação dos leitores, com o objetivo de fornecer
todos os subsídios para um melhor posicionamento quanto ao ordenamento
legal.
Parecer Técnico e Jurídico sobre a Proposta de Emenda
Constitucional nº 43 de 2000 – PEC 43/2000. Analogia: “Do
gr. analogía, pelo lat. analogia. S. f. 1. Ponto de semelhança
entre coisas diferentes; 2. Semelhança, similitude, parecença;
3. Filos. Identidade de relações entre os termos de dois
ou mais pares; 4. Filos. Semelhança entre figuras que só
diferem quanto à escala; 5. Filos. Semelhança de função
entre dois elementos, dentro de suas respectivas totalidades; 6. Físico:
Relação entre dois fenômenos físicos distintos
que podem ser descritos por um formalismo matemático idêntico,
a qual pode existir entre um fenômeno elétrico e outro
mecânico, entre um acústico e um elétrico, etc;
7. Jurídico: Operação lógica mediante a
qual se suprem as omissões da lei, aplicando à apreciação
de uma dada relação jurídica as normas de direito
objetivo disciplinadoras de casos semelhantes”.
Tendo em vista a Proposta de Emenda à Constituição
nº 43 de 2000, que “modifica a redação dos
arts. 20, III, e 26, I, da Constituição Federal, para
definir a titularidade das águas subterrâneas” e
considerando a justificativa para tal alteração, qual
seja, a analogia entre águas superficiais e subterrâneas,
tecemos as considerações a seguir aduzidas: No campo jurídico,
pode a analogia ser definida como processo lógico pelo qual o
aplicador da lei adapta, a um caso concreto não previsto pelo
legislador, norma jurídica que tenha o mesmo fundamento. Pode
a analogia ser conceituada, também, da seguinte forma: operação
que consiste em aplicar, a um caso não previsto, norma jurídica
concernente a uma situação prevista, desde que entre ambos
exista semelhança e a mesma razão jurídica para
resolvê-los de igual maneira. Sabe-se que o juiz, diante do conflito,
não se pode furtar de decidir alegando inexistência de
norma. É esse o mandamento da primeira parte do art. 126 do Código
de Processo Civil, sendo que o art. 4º da Lei de Introdução
ao Código Civil determina que “Quando a lei for omissa,
o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes
e os princípios gerais de direito” e em igual sentido a
segunda parte do art. 126 do CPC.
Diziam os romanos: Ubi eadem ratio ibi idem jus, isto é, onde
houver o mesmo fundamento haverá o mesmo direito, ou Ubi eadem
legis ratio ibi eadem dispositio: onde impera a mesma razão deve
prevalecer a mesma decisão.
Podemos verificar, no caso em tela, que não há omissão
da norma; ao contrário, está claramente definido pelo
artigo 26 da nossa Carta Magna que são bens dos Estados “as
águas superficiais ou subterrâneas (grifo nosso), fluentes,
emergentes e em depósito (...)”. Além disso, a proposta
apresentada - quando estabelece que são bens da União
as águas subterrâneas que banhem mais de um Estado e sirvam
de limites com outros países e que são bens dos Estados
as águas subterrâneas circunscritas ao seu território
- não leva em consideração a impossibilidade de
se precisar o movimento das águas subterrâneas. Mesmo que
uma formação rochosa ocorra continuamente em mais de um
Estado, não se pode afirmar que as águas subterrâneas
percolaram de um Estado para o outro, pois elas são dinâmicas.
É incabível dispensar às águas subterrâneas
o mesmo tratamento conferido às águas superficiais quanto
à dominialidade. Os rios e lagos têm uma calha definida,
sendo plenamente identificáveis seus cursos. O mesmo não
ocorre com as águas subterrâneas, como já acima
explanado. Assim sendo, não é admissível, analogicamente,
estender às águas subterrâneas o critério
de titularidade dominial fixado para as águas superficiais, pois,
a despeito de serem recursos hídricos, não guardam entre
si semelhanças que permitam tal comparação.
Acrescente-se, ainda, que a Política Nacional
de Recursos Hídricos preconiza a descentralização
na gestão de recursos hídricos e a adequação
da gestão às diversidades fiscais, bióticas, demográficas,
econômicas, sociais e culturais das diversas regiões do
País. Ora, a Proposta de Ementa Constitucional apresentada vai
de encontro a este processo, pois, basicamente, centraliza na União
a gerência das águas subterrâneas. Kelly Cristina
Silva (OAB/MG 85894) e Maria Luiza Silva Ramos (engenheira geóloga).
Tentamos deste modo apresentar os prós e contras
da transferência de dominialidade, destacando as argumentações
mais consistentes em relação à matéria em
questão, as quais foram coletadas em resposta ao questionamento
pró-ativo da Câmara Técnica de Águas Subterrâneas
do Conselho Nacional de Recursos Hídricos.
Geólogo João Carlos Simanke de Souza*
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