A História da Geopoços
Alguns da minha faixa etária talvez se lembrem da Geopoços.
Era uma empresa perfuradora, fundada ainda na fase heróica
da execução com equipamentos precários, de pequena
capacidade, quando os filtros eram tubos furados a maçarico
e envolvidos por tela de arame. Firma de porte modesto fundada pelo
Rodrigo Braz Leal Rodrigues, proprietário da Refaga, uma fábrica
de bombas hidráulicas. Português, dizia-se que era agente
secreto da polícia política do ditador Salazar. Não
foi provado, mesmo porque se fosse provado que ele era secreto, ele
não seria mais secreto, criando-se assim um paradoxo. Isso
me lembra o caso da CIA, dos Estados Unidos, em cujas dependências
havia um estacionamento com a placa: “Exclusivo para os agentes
do Serviço Secreto”. Evidentemente, os que eram vistos
lá estacionarem passaram a ser não-secretos.
A Refaga havia sido fundada por um alemão ou suíço,
de cujo nome não me lembro, mas de iniciais R, F, H. Daí
Refaga. A Geopoços instalou-se no mesmo local, na rua da Mooca,
no estilo das então indústrias, nada parecidas com as
atuais, que são limpas, de bela arquitetura, bem organizadas,
em locais aprazíveis. A Mooca era bairro de imigrantes e descendentes.
As indústrias, em sua maioria, instalavam-se em barracões
e armazéns nas mesmas ruas das residências, lançando
poeira e fumaça, empoeirando-as, esfumaçando-as. Ruas
feias e tristes. A Refaga e a Geopoços não escaparam
à regra. Instaladas ao lado da linha férrea da então
Santos-Jundiaí acrescentavam-se a tudo isso o barulho e o trepidar
dos trens. Meio que salvava a situação uma excelente
cantina próxima onde o Leal Rodrigues patrocinava às
vezes opíparos repastos. Leal Rodrigues era casado com a deputada
estadual Conceição da Costa Neves. Esposa em primeiras
núpcias do médico Santa Maria. Muitos ainda a chamavam
de Conceição Santa Maria, nome com que ficou mais famosa.
Dedicada, combativa, meio desbocada, anticomunista. Certa vez assisti
pela televisão a uma mesa-redonda a que ela compareceu. Um
dos participantes, convidado não sei porque misteriosos motivos,
era um cabeleireiro famoso na época, o Antoine, argentino que
na verdade chamava-se Antônio Passos. Pai do brilhante cestobolista
brasileiro, Amauri Passos, bi-campeão mundial pelo Brasil.
Lá pelas tantas, o Antoine interrompeu a Conceição
fazendo uma observação qualquer. Ela:
- Você cale a boca. Não falo com burros. Com o Fulano
aqui (não me lembro quem era) eu discuto, porque embora comunista
ele não é burro.
Numa outra vez, em sessão da Assembléia, bateu boca
com o deputado Cid Franco que, paciência esgotada, deferiu-lhe
um pontapé no traseiro. Até surgiu uma historinha. Perguntava-se:
- Sabe onde que o Cid Franco deu um pontapé na Conceição?
- Onde?
- Na Assembléia Legislativa.
Esse incidente custou uma surra ao deputado Cid Franco, aplicada por
dois ou três funcionários da Refaga, comandados pelo
Leal Rodrigues. Um deles, alto quase dois metros e três dígitos
de peso. Barraram o carro do deputado numa rua deserta e bateram pra
valer. Depois sumiram, menos o Leal Rodrigues que, como autor intelectual,
não havia participado da ação executiva. E acho
que ficaram impunes. Quanto à Geopoços, Leal Rodrigues
era meio visionário. Queria torná-la a maior firma perfuradora
do país, com filiais em vários estados. Contratou uma
equipe de técnicos capazes e, portanto, caros. Entre eles o
Antônio Ferrer Jorba, nascido na Espanha, naturalizado “costarricense”
– e não costarriquenho nem costarriquense, como não
gostava de ser considerado. Ferrer veio para o Brasil, depois foi
trabalhar na Organização Mundial da Saúde e,
finalmente, voltou, como técnico no Departamento de Águas
e Energia Elétrica, de São Paulo, onde participou do
Projeto de Levantamento das Águas Subterrâneas.
O chefe da equipe de perfuração era um italiano, blasfemo,
briguento, trabalhador e eficiente. Chamava-se Stelio Coari, “Stêlio”
circunflexado e não Stélio, agudado. Corrigia zangado
quem errasse. Sua “bestêmia” preferida e freqüente
era “putanaccia Eva”. Aqui também “Eva”
com “ê” e não “é”. Blasfêmia
pesada e de mau gosto, além de injusta, pois nem que quisesse,
Eva não poderia ter sido o que ele dizia.
O responsável pela manutenção mecânica
dos equipamentos era outro italiano, baixo, gordo e simpático,
antítese do Stelio. Quando ficou sabendo do meu sobrenome veio
falar comigo e tornou-se meu companheiro de várias conversas.
Só que ele era de Bari e o dialeto barês é incompreensível.
Por sorte ele falava muito e não me dava tempo de responder,
de modo que ele achava que eu tivesse entendido. Lembro que uma vez
ele encasquetou com umas benditas bronzinas que não serviam
e que o Stelio não queria trocar. Veio se queixar comigo: ”...
quals brronzinas...” e despejou o que eu achei que foram terríveis
epítetos contra as bronzinas e o seu patrício.
Outro dispendioso funcionário da Geopoços era o general
Godofredo, reformado, cunhado da Conceição. Recebia
um bom salário e nada fazia. Almoçava lautamente na
excelente cantina próxima, por conta da firma e cochilava em
sua cadeira à tarde. Mas era um bom papo, grande contador de
casos divertidos, que vivera no Exército.
Com grandes despesas e sem conseguir muitos serviços, a Geopoços
não vingou. Desfez-se. Não tive mais notícias
do Leal Rodrigues. O Stelio foi morar em Jundiaí, parece, onde
passou a trabalhar com venda de automóveis. O barês foi
assaltado, mas nada de sério ocorreu com ele. Vou contar duas
historinhas interessantes e verdadeiras, muito apropriadas à
situação política atual. Primeira historinha
interessante e verdadeira:
José Bonifácio de Andrada e Silva, quando ministro do
Império, perdeu, por negligência, o ordenado que havia
recebido num certo mês. Sabedor do caso, o imperador D. Pedro
II determinou ao ministro da Fazenda, Martim Francisco de Andrada
e Silva, irmão do descuidado, que lhe pagasse novo salário.
Martim Francisco recusou-se:
- O ano tem doze meses e não treze para alguns privilegiados.
Vou dividir com ele meu ordenado.
Segunda historinha interessante e verdadeira: Quando Getúlio
Vargas era presidente do Brasil, na fase da ditadura, inaugurou-se
uma agência do Banco do Brasil em pequena cidade do interior
do Rio Grande do Sul. Com o objetivo de agradar um velho amigo, gaúcho
como ele, Getúlio nomeou-o gerente. Passado algum tempo, recebeu
um telegrama:
- Senhor presidente. Eles estão chegando ao meu preço.
Demita-me.
Engenheiro Euclydes Cavallari
(11) 3031-6473
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