História em Jequitinhonha

O rio Jequitinhonha. O “rio largo cheio de peixes”, em tupi. No seu vale, a “cidade do amor” e o “rio da arara grande”, Araçuaí, de nome sonoro. Outras, de nomes singelos, românticos, piedosos...: Turmalina, Pedra Azul, Berilo - das jóias brasileiras - Almenara - irradiando luz - Virgem da Lapa - fé, procissões - Salto da Divisa - encerrando o vale em Minas - Diamantina - histórica, de Juscelino e Xica da Silva - Salinas - deliciosa, das excelentes cachaças...

Finalmente nosso C47 decolou de Pampulha com destino a Araçuaí. Poucos minutos antes, partira outro, também do projeto Rondon, levando alunos e professores da PUC de Belo Horizonte. Seguimos juntos. Nós, um pouco atrás e acima deles. Para entusiasmo do Maga Patalógica que não se continha:

- Mestre, olha, o outro C47 vai ao nosso lado, mantendo a mesma posição. A velocidade relativa é nula. Mesmo quando atravessam nuvens, saem delas exatamente como entraram!

No início do “procedimento de descida” os aviões aumentaram a sua distância relativa, por segurança. O aeroporto de Araçuaí não era pavimentado e estavam sendo levantadas nuvens de poeira, pela chegada de muitos aviões, alguns grandes, fretados e vários jatinhos. Eram autoridades “civis, militares e eclesiásticas” que iam participar da solenidade de inauguração do Campus Avançado. Era Semana da Pátria, sé-setembro, como diz o Alaor. Havia necessidade de baixar um pouco a poeira do anterior para o nosso avião poder pousar.

Desembarcados, seguimos do aeroporto ao Campus, num ônibus da Gontijo, que havia levado alunos e professores desde Belo Horizonte e estava sem o vidro da frente do motorista, arrebentado por uma pedra voadora no trecho sem pavimentação entre a BR116 e Araçuaí, cerca de setenta quilômetros.

No trajeto, passamos entre alas de vaqueiros e garimpeiros, aqueles a cavalo, estes a pé, vestidos com seus trajes típicos, com chapéus de couro característicos da região, diferentes dos que a gente conhece na Bahia, por exemplo. Portavam bandeirinhas e faixas, gritavam saudações e lançavam caramurus. Numa das faixas:

“Que bom que você veio”.

Antes de entrar no ônibus passei por dois vaqueiros e um dizia ao outro:

- Viu cumé grande? Lá em riba parece pequeninim, mas cabe um mondegente!

No Campus, não assistimos à solenidade. Fomos, este fomos eram Campanelli, Maga Patalógica, PX e eu, diretamente montar a antena e o equipamento do rádio.

A sala do rádio era no andar superior. Para lá fomos PX e eu. A antena ia ser montada no solo mesmo, pois o prédio ficava numa parte alta e descampada, não havendo necessidade instalá-la no telhado, como declarou o PX. O Maga e o Campa se encarregaram dela.

Tudo pronto ligou-se o rádio, alimentado pela bateria e o PX pôs-se a girar o comando, procurando sintonizar alguma coisa. Nada. Guinchos, assobios, nenhum contato com entes falantes.

O Maga Patalógica foi à janela e gritou:

- Mestre! A vaca derrubou a antena e está comendo as conexões de plástico!

Fui ver.

- Claro. Vocês puseram a coitada para lá da cerca! Têm de montar para cá.

Corrigido o problema com nova montagem da antena, agora cis e não trans cerca, improvisadas novas conexões com pedaços de uma mangueira velha de jardim estabeleceram-se às comunicações por rádio com o ABC paulista e a PUC de Belo Horizonte e outras, com um marinheiro finlandês que estava no Mar do Norte, um gaúcho argentino nos Pampas e vários outros, para deleite do PX, que, fanático como todo rádio amador, não largou mais do equipamento. Inclusive fez uma ligação que permitiu contato do rádio com nossos telefones em casa. Novidade para a época, que nos maravilhou.

Terminada a solenidade de inauguração fomos recepcionados com um almoço no clube social local, obviamente chamado “Clube Social Araçuaí”. Insuperável comida mineira e saborosa cerveja gelada. O calor em Araçuaí é forte, não sufocante nem insuportável, mas muito cervejável.

Após o almoço, o diretor administrativo do Campus, nele residente, mas professor da Universidade do ABC, convidou-nos:

- Vamos ver os morcegos.

Não me lembro do nome dele. Só sei que ele havia conseguido, em Araçuaí, bater o seu carro com um outro!
Sentamo-nos num banco do jardim, em frente ao prédio do Campus, olhando para uma junta de dilatação. Disse-nos ele:

- Os morcegos saem dessa junta, exatamente às dez para as seis.

Um ruído ensurdecedor de asas entrechocando-se anunciou a saída deles. Em revoada, barulhentos, guinchando, começaram a escapar da junta. Olhamos os relógios: dez para as seis. Num vôo desorganizado, nada tendo de ver com a suavidade e coordenação dos pássaros, batendo contra árvores, paredes, entre si e conosco, numa enorme nuvem que se diluía, foram-se dispersando e tomando o rumo da cidade.

Restabelecida a calma, voltamos à sala de rádio.

Já noite escura, “operando o equipamento”, fomos atacados por um enxame de pequenos besouros que entraram pelas janelas e caíram sobre nós, penetrando nas nossas narinas, nos ouvidos, batendo nos olhos, emaranhando-se nos cabelos, ensurdecendo-nos com seu zumbido infernal. Muitos, muitos, enorme quantidade.
Fugimos, correndo, tropeçando uns nos outros, descendo as escadas pulando vários degraus e refugiamo-nos nos quartos, no andar térreo. Felizmente estavam com as janelas fechadas e pudemos escapar da fúria assassina.

No dia seguinte, pela manhã, fomos visitar o artesão mais famoso da cidade, o Adão, autor do monumento em madeira do barqueiro, colocado em frente à igreja matriz. Sobre um pedestal de pedra o barqueiro, de pé, com suas roupas típicas e o chapéu de couro, mão direita em pala frente aos olhos, mirava o Araçuaí, apoiando-se num remo que mantinha ereto ao seu lado. Belo e imponente em sua simplicidade!

Na oficina do Adão, de piso de terra batida, telhas vãs, trabalhavam em humildes bancadas vários artistas da madeira e meninos aprendizes. Umas das obras mais famosas do Adão eram as caras de Cristo escavadas em galhos de sucupira, com coroas de espinhos tiradas de agressivos arbustos da caatinga.

O dia foi trabalhoso, pois se iniciaram para a nossa equipe de estagiários os serviços de atendimento à população. Numa outra vez contarei. Esquecia-me: Araçuaí é também chamada a “cidade da manga”. Muitas e excelentes.

Engenheiro Euclydes Cavallari
(11) 3031-6473
alicecv@uol.com.br

 
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