Interferências em rios

O assunto está na moda, por causa do polêmico projeto de transposição do Rio São Francisco. Não vou tratar dele, pois não são ainda águas passadas nem mesmo presentes e, talvez, não venham a ser futuras. Quero apenas relembrar alguns casos de ação do homem sobre rios ocorridos no Estado de São Paulo.

O território paulista tem uma topografia muito peculiar, com a muralha de 800 metros da Serra do Mar, muito íngreme, próxima ao litoral. Acima, o planalto desce para o interior, em declive suave, até cerca de 400 metros, nas áreas próximas ao rio Paraná, na divisa com Mato Grosso do Sul.

Isso deu ao fluxo hidrográfico uma conseqüência, creio que única no mundo, com a grande maioria dos rios de porte nascendo próximos ao mar e dirigindo-se para o interior.

O rio Tietê, por exemplo, nasce em Salesópolis, num degrau da Serra do Mar, muito perto do Oceano Atlântico, interioriza-se, deságua no rio Paraná, que leva suas águas para o sul, chegando ao mar na desembocadura do rio da Prata, depois de percorrer milhares de quilômetros. O mesmo acontece com o rio Grande, divisa com Minas Gerais, o São José dos Dourados, o Aguapeí, o Paranapanema, divisa com o Paraná.

Essa peculiaridade facilitou enormemente a penetração dos bandeirantes no território brasileiro, com a se movente tieteana estrada. A “Grande Muralha”, por sua vez, possibilitou fornecimento cômodo de energia elétrica à cidade de São Paulo, com a queda de 800 metros de altura acionando a usina de Cubatão.

Mas trouxe inconvenientes. A metrópole em que se transformou a pequena vila de Piratininga de Nóbrega e Anchieta – e uma das causas desse crescimento foi exatamente a abundância de energia elétrica relativamente barata - situa-se nas cabeceiras do Tietê e não na sua foz. Fato também raro no mundo, em que as grandes cidades estão próximas às desembocaduras dos rios, portanto tendo à disposição maiores vazões. Londres, Paris e muitas outras são assim.

Duas das interferências que vou relembrar procuraram sanar a escassez de água do velho Anhembi no seu trajeto pela Paulicéia (desvairada, disse-se): o rio Pinheiros e o Sistema Cantareira.

O Valo Grande. Não foi na verdade uma transposição de bacias, mais um desvio de um rio que reagiu à impertinência dos homens. Também não teve nada a ver com o rio Tietê nem com os rios que correm do mar para o interior. O Ribeira de Iguape é o único rio paulista de maior porte que vai disciplinadamente do interior para o mar.

Fica no litoral sul e, no século dezenove, era de muita valia para a região, pois escoava por barcos a produção agrícola, principalmente a do melhor arroz do mundo, que era embarcada, na cidade de Iguape, para o porto de Santos. Iguape tinha a importância de Salvador ou Rio de Janeiro.

Mas o Ribeira não podia também deixar de ter sua pequena indisciplina. Vinha do interior e, próximo à cidade, tão próximo que os barqueiros chegavam a avistar as torres da igreja, desviava-se e passava a correr paralelamente ao mar, para o norte, por cerca de uma dezena de quilômetros e nele desaguava. As embarcações tinham de ir até a foz, próxima ao final da Ilha Comprida, entrar no Mar Pequeno, que separa a ilha do continente e refazer a dezena de quilômetros percorridos na ida, para chegar à cidade. O trajeto ficava assim aumentado em vinte quilômetros, após se ter chegado a algumas centenas de metros de Iguape.

A óbvia idéia que surgiu foi construir-se um canal, desde o ponto em que o rio fazia um ângulo reto até o porto de Iguape, no Mar Pequeno.

O Governo Imperial destinou verba pública para as obras, executadas com muita economia, manualmente, a pás, picaretas, enxadas, carrocinhas de burros e escravos. Um canal de largura e profundidade modestas, suficientes apenas para a passagem dos pequenos barcos que transportavam a produção do vale.
No entanto, essa modéstia foi destruída pela declividade do canal. O desnível entre o ponto em que o rio iniciava sua curvatura e a sua foz no Mar Pequeno era vencido antes ao longo de dez quilômetros. Agora em centenas de metros. A velocidade das águas alargou e aprofundou o leito, derrubando casas próximas às margens e trazendo a foz do rio para Iguape, secando o trecho que ia antes à desembocadura antiga. Formou-se o Valo Grande. O trecho morto ficou apenas uma sucessão de pequenas lagoas de águas paradas. O porto de Iguape ficou assoreado e apareceram varias ilhas no Mar Pequeno.

Anos mais tarde, o DAEE - Departamento de Águas e Energia Elétrica de São Paulo - resolveu barrar o Valo Grande, para diminuir o assoreamento do Mar Pequeno e renascer o trecho seco do Ribeira.

Conseqüência econômica indesejável. O Valo, desviado, deixou de despejar no Mar Pequeno nutrientes para os peixes, especialmente manjubas, fonte de renda e subsistência para a região.

É perigoso mexer com os rios. Eles, como os computadores, têm vontades próprias incontroláveis.

O rio Pinheiros. Na sua passagem pela área que é atualmente a Grande São Paulo, o rio Tietê recebe alguns afluentes. Os mais importantes são o Pinheiros e os históricos Tamanduateí e Anhangabaú, em cuja Mesopotâmia índia foi fundado o colégio dos jesuítas. Estão canalizados, menos o Anhangabaú, que foi entubado. Não é mais visível a olho nu. Só dá sinais de vida quando as enchentes no vale estouram suas galerias e inundam as avenidas.

Para reforçar a vazão disponível na represa Billings, fornecedora de água para a usina hidroelétrica do Cubatão, o rio Tietê recebeu as barragens de Santana de Parnaíba e Pirapora do Bom Jesus, construídas a jusante da cidade de São Paulo e passou a ser afluente do Pinheiros e não vice-versa, como antes. O seu fluxo foi invertido pela elevação de nível e pela ação da usina elevatória de Traição, com capacidade de recalcar 280 m³ /s a uma altura de 5 m para o canal do Pinheiros. A usina é reversível, de modo que às vezes o Pinheiros é afluente do Tietê e outras vezes este o é daquele. Com a diminuição da importância da geração de energia em Cubatão, o sistema é atualmente utilizado mais para o controle de enchentes.

O Sistema Cantareira. É uma transposição múltipla de sub-bacias. Os rios Jaguari, Jacareí, Cachoeira, Atibaínha e Juqueri, de cursos paralelos ao do Tietê, têm suas águas barradas e desviadas de um para o outro, em sucessão, por um sistema todo por gravidade, em túneis e canais, atingindo no final a estação de tratamento de Guaraú, na Região Metropolitana da Grande São Paulo. Apenas dessa estação para o reservatório de Águas Claras é que há um recalque de 33 m³/s num desnível de cem metros.

É o Sistema Cantareira, da SABESP, que atende a mais da metade do abastecimento de água da Metrópole. Como os rios pertencem à bacia do Piracicaba, houve reação da prefeitura daquela cidade e muita polêmica e estudos tiveram lugar.

Um dos rios desviados tem suas nascentes no Estado de Minas Gerais, o que o torna federal e assim a aprovação final do esquema deveria ser submetida ao DNAEE. Este, no entanto, não quis enfrentar o problema e o devolveu ao DAEE de São Paulo, delegando a ele sua apreciação, por considerá-lo tecnicamente capaz disso.

O canal de Pereira Barreto. No norte do estado, na região do município de Pereira Barreto, os rios Tietê e São José dos Dourados, já próximos às suas desembocaduras, correm paralelos entre si até o rio Paraná, divisa com Mato Grosso do Sul. Nele despejam suas águas, o Tietê, a jusante da usina hidroelétrica de Ilha Solteira e o São José dos Dourados, mais ao norte, a montante dela.

Construiu-se uma barragem no Tietê e, aproveitando-se a elevação do nível, abriu-se um canal que leva suas águas por gravidade ao São José dos Dourados, reforçando-se assim a vazão disponível para geração de energia em Ilha Solteira.

Houve conseqüências com todas essas mexidas? Certamente. Boas algumas, más outras. Valeram a pena as boas? Foram necessárias as más? As interferências continuarão a ser feitas, no Brasil e em todo o mundo. O meu amigo e colega de turma, professor Kokei Uehara, o “domador de rios”, que me desculpe, mas os rios são indomáveis.

Engenheiro Euclydes Cavallari
(11) 3031-6473
alicecv@uol.com.br

 
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