No dia seguinte à inauguração do Campus Avançado do Vale do Jequitinhonha, em Araçuaí, fomos acordados pelo som do ranchinho e do coro das crianças, ensinadas pelo frei Jean. O frade era belga e pertencia à organização “Ação Social”, da qual, em Araçuaí, fazia parte também a irmã Dominique, belga como ele. Chamado pelos meninos e meninas de “Fei Jão”, era uma figura. Vestia bermudas, camiseta, usava o chapéu de couro típico do vale e calçava sandálias havaianas. Barba longa, já meio grisalha e cabeleira lisa, longa até os ombros. Parecia um Cristo belgomineiro. Junto às suas atividades de benemerência, caridade e ensino dedicados aos pobres do vale, fazia pesquisas do folclore local, gravando músicas e cantos das manifestações católicas e pagãs da região, em longas viagens de lambreta, que muitas vezes ultrapassavam os limites de Minas.

Saímos da sede do Campus: Campanelli, Maga Patalógica e eu acompanhados da irmã Dominique, para conhecer a cidade. Ao passarmos pelo ranchinho, frei Jean interrompeu o que estavam executando e fez as crianças cantarem uma música à nossa homenagem. Não me lembro da letra, mas havia nela algo como “que bom que vocês vieram!”. A sede do Campus ficava numa elevação descampada, da qual se avistava a cidade, mais abaixo. Descemos pela estradinha pedregosa e empoeirada que levava à ponte sobre o córrego Pedregulho, intermitente, seco na ocasião. Atravessamos e subimos pelo outro lado até à praça da cidade. Em frente à Igreja, de costas para ela, no meio do canteiro central, o monumento do barqueiro, de madeira, sobre um pedestal de pedra, ele de pé, a mão em pala sob a aba do chapéu de couro, a outra segurando um remo na vertical, olhando ao longe o rio Araçuaí. Obra do artesão mestre da cidade, Adão.

- Primeiro vamos ver os ricos. - Disse irmã Dominique.

Sim, havia “ricos” em Araçuaí. Era uma classe média próspera, constituída por fazendeiros e, principalmente pelos exploradores das jazidas de pedras semipreciosas, “pedras brasileiras”, como eles diziam, mineiradas por garimpeiros pobres.

Visitamos um exportador de pedras. Casa grande, com amplo jardim irrigado. Luxuosa e decorada com tapetes, quadros, vasos, estatuetas, que o dólar das pedras permitia comprar com fartura.

Numa das salas havia uma exposição de pedras e jóias com elas confeccionadas. Turmalinas, topázios, quartzos de diversas cores, anéis, colares...

Presenteou a cada um de nós com um anel e deu-nos seu cartão de visita: Fulano de Tal, brazilian gems, matriz em Araçuaí, filiais em Teófilo Otoni, New York, London, Tókio.

- Agora vamos à parte pobre.

Era do outro lado da praça.

Começando nela, ficava a “rua das mulheres”. Na esquina, um açougue exibia suas carnes sobre caixotes de madeira, próximos à porta, quase na calçada. Cortes bovinos e suínos, ao lado de preás eviscerados, esticados sobre as tábuas, perninhas abertas, como um xis. Moscas, evidentemente.

O Maga Patalógica, meio nauseado:

- A gente está comendo isso lá no Campus?

Procurei animá-lo:

- Não. Lá as tias só usam carne de sol.

“As tias” eram as duas cozinheiras, evidentemente pretas e gordas, que faziam um excelente baião de dois.

Vizinha ao açougue, “parede meia”, já havia uma das “casas das mulheres”, que ocupavam os dois lados da rua. Poeirenta e pedregosa, sem pavimentação, águas servidas correndo por uma vala central. Taperas pobres, feias, sujas, sem jardins, encostadas umas nas outras. Em algumas, as mulheres estavam à porta, já àquela hora da manhã, oferecendo seus préstimos. Meninas, ridiculamente maquiadas, em ordinários vestidos “provocantes”, muito colorido. Irmã Dominique parou em uma das casas, pedindo-nos para esperar e chamou uma mulher pela porta. Evidentemente chamava-se Maria. De alguma coisa, não lembro. Veio com uma criança pequena no colo e sorriu para a freira. Esta lhe deu umas caixas de remédio e fez algumas recomendações. Parou depois em mais três ou quatro casas, repetindo a mesma operação.

Irmã Dominique se despediu e nós seguimos por uma trilha até o ônibus da Gontijo que nos aguardava e nos levou, com vários outros professores e alunos, estagiários do Campus, ao posto de saúde de um distrito mais afastado, à beira do Pedregulho, onde os estudantes de medicina estavam orientando, atendendo e medicando pessoas. Senise e Albanese, diretor e secretário de nossa escola de engenharia, juntaram-se a nós e fomos andando ao longo do córrego, afastando-nos do posto de saúde. Leito seco de pedregulhos fazendo jus ao nome tinha diversos “olhos d’água”, pequenos poços escavados pelos moradores, atingindo o nível do “lençol freático”. Neles, as mulheres lavavam pratos e louças, roupas, bebês e coletavam água para cozinha e bebida. Seguimos adiante e expliquei que era idéia utilizar os estagiários de engenharia do Campus para execução de algumas barragens submersas, com a finalidade de reter a água entre os pedregulhos, evitando que o fluxo subterrâneo esgotasse a reserva de água. Seriam paredes de pedra rejuntadas, perpendiculares ao sentido de escoamento. Atingindo o pouco profundo embasamento cristalino e não aflorando sobre o leito de pedregulho, pois piorariam as condições de cheias e não teriam utilidade de reserva superficial, dada a forte evaporação.

O Maga Patalógica boquiabriu-se, maravilhado com a idéia, que, aliás, não era nossa, mas do Aldo Rebouças.

Demorados na andança e nas explicações, ao retornarmos ao posto, o ônibus não estava mais lá. Abandonados, sem condução, longe da sede do Campus. Naquela época não havia celulares para um eventual socorro. Voltamos a pé.

Sob o sol de meio dia, quase solistício de verão, nenhuma sombra de árvore, suados e exaustos, chegamos à praça, onde vimos o Gontijo parado em frente ao Trepadinho.

Era “o bar” de Araçuaí. Assim chamado, pois ficava no andar superior, sobre o armazém do seu proprietário. “Andar” não era bem o termo. Laje de cobertura do armazém, não tinha revestimento de piso sobre o concreto rugoso. Paredes e cobertura precárias remendadas com folhas de plástico. Mas servia incríveis tira-gostos, muitos dos quais não sabíamos do que eram feitos e uma cerveja gelada espetacular, tendo talvez como principal ingrediente o calor do Vale do Jequitinhonha.

Lá, tira-gostando e cervejando, toda a turma do ônibus, que nos recebeu com uma solene vaia.
Como recompensa, tivemos boca-livre.

Até aqui, Pedregulho e Trepadinho. Os Pipocas ficam para uma próxima vez.

Pedra brasileira das que são mineiradas em Araçuaí

Engenheiro Euclydes Cavallari
(11) 3031-6473
alicecv@uol.com.br

 
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