A verdadeira face do aqüífero Guarani: mitos e fatos

os últimos anos, segundo a mídia, foi “descoberto” um gigantesco aqüífero que cobria grandes áreas do Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai. Ele ocuparia uma área de 1.200.000 km2 do Mercosul e era um mega-reservatório de água doce, o maior do mundo, que poderia abastecer a humanidade por centenas e centenas de anos. Assim, ele atraiu a atenção de organismos internacionais preocupados em “preservar” este recurso para o futuro. A ONU logo imaginou transformá-lo em reserva estratégica, Patrimônio da Humanidade. O Banco Mundial acreditou na maior reserva de água com fluxo transfronteiriço do mundo. Mas, será que existe realmente o Aqüífero Guarani? A discussão foi levantada pelo geólogo José Luiz Flores Machado, da CPRM – Serviço Geológico do Brasil – durante o XVIII Encontro de Perfuradores de Poços, realizado em Ribeirão Preto. Confira!

Os estudos realizados nos últimos anos têm demonstrado, inequivocamente, que ele não é “um” aqüífero e que está compartimentado em vários blocos. Ele apresenta uma estrutura de camadas em que se superpõem muitos aqüíferos com potencialidades muito diversas. Ao contrário do que se imagina, suas águas não apresentam potabilidade em toda a sua área de ocorrência. O que se considera Aqüífero Guarani possui muitas limitações, mostrando a necessidade de uma reavaliação de sua potencialidade. Neste artigo será tratado uns dos assuntos que mais ocupou espaço na mídia, nos temas relacionados com água subterrânea, meio ambiente, gestão e proteção de recursos hídricos.

Nestes últimos anos nunca os meios de comunicação, como rádio, televisão e jornais estiveram tão repletos de informações sobre os lençóis de águas subterrâneas e também mares subterrâneos, mas para orgulho do meio geológico, também a palavra aqüífero se fez presente, de modo que, qualquer pessoa por mais humilde ou leiga que fosse já conseguia utilizá-la com desenvoltura. Talvez esta seja a mais importante contribuição que o Aqüífero Guarani tenha dado para a sociedade brasileira e do MERCOSUL, fazer com que as pessoas comuns tivessem interesse pelo que estava acontecendo com as águas, em especial, as desconhecidas águas subterrâneas. Isto seria magnífico, caso as informações que estivessem sendo passadas fossem reais e preferencialmente não alarmistas, ou o que é mais preocupante, eivadas de uma megalomania, que dizem ser brasileira, mas que parece também fazer parte dos costumes dos nossos vizinhos de bloco econômico.

A seguir, o texto se desenvolverá no sentido de como surgiu e como se propagou tão rapidamente informações sobre este aqüífero (mais propriamente um sistema aqüífero), o porquê de sua denominação e também porque “pegou” tão facilmente na mídia e no coração dos desavisados.

“Descobrimento” do Aqüífero Guarani

Uma das coisas mais impressionantes que me aconteceu, foi quando após mais de vinte anos trabalhando exclusivamente com hidrogeologia, estudando e mapeando aqüíferos da Bacia do Paraná, como os ligados à Formação Botucatu, Grupo Rosário do Sul e Formação Rio Bonito, minha faxineira gentilmente me explicou como foi descoberto o Aqüífero Guarani e confidenciou-me que com tal quantidade de água doce não necessitaríamos mais ter preocupações com o abastecimento futuro de água, já que por pelo menos dois mil e quinhentos anos este problema já estava solucionado. Realmente, depois desta novidade o povo deve ter tido a confirmação de que Deus era realmente brasileiro e nasceu em algum estado entre o Mato Grosso e o Rio Grande do Sul.

Gilboa et al (1976) após terem assessorado o DAEE/SP publicaram um interessante trabalho sobre o que seria o Sistema Aqüífero Botucatu, segundo eles um aqüífero inexplorado de dimensões continentais associado à formação geológica Botucatu. Neste mesmo ano, Aldo Rebouças (1976) apresenta uma substanciosa tese de livre-docência em que demonstra uma grande potencialidade para o Sistema Aqüífero Botucatu-Pirambóia, baseado em dados de perfurações da Petrobrás e em alguns poços profundos para água, basicamente no Estado de São Paulo, onde estas formações aqüíferas já eram conhecidas desde o início do século XX.

Após alguns anos de quase total esquecimento (afinal o nome Botucatu não é tão sonoro), na década de 90 após algumas perfurações bem sucedidas, aliadas ao conhecimento de que existiriam no Uruguai, Argentina e Paraguai, formações geológicas semelhantes, obviamente com nomes diferentes, foi semeada a idéia de um Aqüífero Internacional Botucatu, tendo sido lançadas Jornadas Técnicas a partir de 1994. Neste mesmo ano, Rebouças (1994) em um dos seus trabalhos mais coerentes e de extrema lucidez sobre esse tema, conclui que pelas grandes diferenças geológicas, hidrogeológicas, hidrodinâmicas, hidráulicas e hidroquímicas, tanto o Botucatu quanto o Pirambóia deveriam fazer parte de sistemas hidrogeológicos diferentes. Na 1ª Jornada Técnica sobre o Aqüífero Internacional Botucatu em 1994, foram feitas as primeiras apresentações sobre como seria este aqüífero nos quatro países do Mercosul, observando-se que a diversidade de nomes dos aqüíferos que ocorriam nestes países dificultava sua correlação. Araújo et al (1995) apresentaram no 1º Mercosul de Águas Subterrâneas um trabalho detalhado levando em consideração a escala em que foi feito, com um banco de dados que ainda é consultado com as principais perfurações da Petrobrás - Paulipetro e poços profundos para água perfurados por empresas privadas e estatais. Desse trabalho resultou o que denominaram de Aqüífero Gigante do Mercosul. Até aquela data tinha sido o principal trabalho feito dentro de critérios científicos, sendo assim até hoje, porém o nome escolhido não “pegou”.

O Aqüífero Guarani ainda não havia sido “descoberto”, pois se pode imaginar que além das disputas esportivas, seria difícil, por exemplo, para um argentino ter que “engolir” um sistema aqüífero brasileiro em seu território. Da parte brasileira talvez ocorresse o mesmo. Mas um geólogo uruguaio (Danilo Anton) conseguiu contornar o problema transfronteiriço, pois segundo Rosa F°, E.F. (2005, comun. pessoal), em uma mesa de bar, este geólogo sugeriu o nome de Guarani, pois a nação indígena pertencia aos quatro países envolvidos e, além de não permitir melindres ainda serviu como homenagem à esta pátria indígena. A partir da aceitação deste nome por todos os envolvidos, esta é considerada a data de “descobrimento” do Guarani.

A venda da idéia do aqüífero gigante para a mídia e o Banco Mundial

Com todas as maravilhas já faladas e escritas sobre o “recém descoberto” Aqüífero Guarani, é natural que entidades internacionais ficassem seriamente preocupadas na “preservação” de um bem, não brasileiro ou do Mercosul, mas um patrimônio da humanidade, isto é, de outros interessados e provavelmente com outros interesses. Mas o que mais impressiona é que, apesar de sua decantada importância, na internet apenas nos anos 2004 e 2005, apareceram os primeiros trabalhos com real utilidade e reconhecido conteúdo científico. Durante anos apenas foram atiradas ao vento supostas potencialidades do aqüífero, em geral muito ufanistas e como já escrito anteriormente, eivadas de megalomania. As pesquisas em sites, via de regra, desembocavam no seguinte: “este é o maior aqüífero transfronteiriço do mundo”, ou então, “ele é um mega-reservatório de água doce, que deve ser protegido”. Existem mais de 500 sites com repetições destes chavões. A lavagem cerebral foi tão eficiente, que afetou não somente o público leigo, agora preocupado com o destino da “maior reserva subterrânea transfronteiriça de água doce do mundo”, mas também afetou o corpo técnico e científico, que como robôs, sem inteligência própria, passaram a repetir estes chavões em todos os seus trabalhos e participações em congressos. A preocupação com a “preservação” deste grande manancial, que poderia abastecer a humanidade por centenas e centenas de anos, não demorou a chamar a atenção de outros países, tendo finalmente encontrado guarida na diplomacia da ONU, que logo imaginou transformar este manancial precioso, que está nas mãos de uns incultos descendentes de guaranis, em um Patrimônio da Humanidade, intocável para ser utilizado pelas próximas gerações. Felizmente, como veremos a seguir, toda esta megalomania, que poderia nos custar muito caro, caso fosse transformada em Patrimônio da Humanidade e considerada apenas como reserva estratégica para nossos descendentes, não apresenta razão alguma para ser encarada desta forma.

Apenas uma preocupação resta: que os pesquisadores e consultores do Projeto Guarani do Banco Mundial encarem sua tarefa como a definição real (sem fantasias) do que seria esta entidade hidrogeológica e não como uma maneira de tentar validar o que já está sacramentado pela mídia.

O aqüífero Guarani foi vendido como um mega-reservatório contínuo de água subterrânea, de água com excelente qualidade, sendo seus recursos transfronteiriços entre os quatro países do Mercosul. Tanto o Banco Mundial, como a OEA e a ONU, além do público leigo, grande parte da comunidade científica e técnica aceitou esta versão como uma verdade incontestável. A interpretação da figura 1, onde estão compiladas as principais estruturas que influenciam o aqüífero já sugere que ele não possa ser uma entidade contínua.

Será que existe realmente o Aqüífero Guarani?

“Um” Aqüífero Guarani, até pela sua definição, como um pacote juro-triássico, seria impossível de existir, ademais ele é um pacote neopermiano a eocretáceo, o que aumentaria ainda mais a sua abrangência. Na realidade poderiam existir vários “aqüíferos” Guarani, que comporiam então um sistema. No entanto, por definição, um sistema aqüífero pressupõe a existência de conexão hidráulica, com similaridade de condições hidrogeológicas. Rebouças (1994) já questionava sobre a inclusão dos aqüíferos Botucatu e Pirambóia dentro de um único sistema, devido às características hidrogeológicas muito discordantes entre estes dois aqüíferos. Machado (1988) já determinava características geohidráulicas muito diversas em poços da fronteira oeste do Rio Grande do Sul, o que representaria na atualidade a melhor porção estadual de um hipotético Aqüífero Guarani. Na época os poços foram considerados como representantes dos Aqüíferos Botucatu e Rosário do Sul. Outros autores (Montaño & Pessi, 1988, Montaño et al., 1998, Montaño et al, 2002) escreveram sobre uma diversidade na potencialidade do Aqüífero Tacuarembó no Uruguai e Argentina. Esta descontinuidade de potencialidade reflete mudanças na hidroestratigrafia e na estrutura. Apesar das diferenças com os aqüíferos ocorrentes na porção brasileira, todos foram englobados dentro de um grande aqüífero (Guarani ou Gigante do Mercosul). Amore & Freitas (2002) em artigo apresentado ao XII Congresso Brasileiro de Águas Subterrâneas, sugerem que o Sistema Aqüífero Guarani (SAG) está muito afetado por estruturas rúpteis e propõem que sejam realizados estudos visando especialmente a delimitação dos blocos que poderiam afetar este aqüífero.

Rosa F° et al (2003) descrevem a influência que o Arco de Ponta Grossa exerce sobre o Aqüífero Guarani, delimitando áreas francamente estruturadas de modo a dividi-lo em pelo menos duas grandes compartimentações, com características muito diferentes. Machado & Faccini (2004) demonstraram que o Rio Grande do Sul foi influenciado por três grandes sistemas de falhas, que dividiria o SAG em pelo menos quatro grandes compartimentos, com características hidrogeológicas muito distintas.

Pelo exposto se pode deduzir que o SAG não apresenta nenhuma continuidade, tanto na porção brasileira como em outros países do Mercosul. Com relação à sua qualidade, ele foi vendido como um mega-reservatório de água doce. Este afirmação é especialmente sensível, pois quase todos os trabalhos, artigos, relatórios e outros documentos sobre o Aqüífero Guarani, são unânimes em descrever um reservatório de águas com tipologias químicas muito díspares e qualidades químicas para potabilidade, irrigação e uso na indústria que deixa muito a desejar em quase toda a sua área de ocorrência. Machado (1998) descreveu a hidroestratigrafia química dos aqüíferos da região central do Rio Grande do Sul. Nele se podem observar a grande diferença entre a evolução química e a qualidade dos aqüíferos triássicos e cretácicos do Estado e que posteriormente foram englobados no Aqüífero Guarani.

Rosa F° et al (2005) também descreve grandes diferenças de qualidade das águas do aqüífero no Estado do Paraná, onde grande parte das águas é classificada como salobra.

Gastmans & Chang (2005) citam que as águas do aqüífero nas proximidades do rio Paraná aumentam substancialmente em sua condutividade (teor de sais), do mesmo modo em São Paulo, Silva (1983) descreveu que o Sistema Aqüífero Botucatu-Pirambóia mostrava um acréscimo muito grande de sais nas proximidades do rio Paraná. Pesce (2002) analisando poços perfurados para estâncias termais, na divisa entre a Argentina e o Uruguai, apresenta análises em que muitos dos poços apresentam grandes incrementos no teor de sais, tornando impróprias as águas para abastecimento público, podendo ser usadas unicamente por suas condições termais.

Sistema Aqüífero Guarani como foi definido é na realidade um simples agrupamento de unidades hidroestratigráficas. Pelo exposto se pode deduzir que o SAG não apresenta uma homogeneidade quanto à sua qualidade química, sendo que na maior parte de sua área de ocorrência apresenta águas salobras ou muito salinas, impróprias para consumo humano.

Quanto à sua capacidade produtiva, este aqüífero apresenta variações ainda mais abrangentes. Quando se reuniram várias litologias com origens deposicionais conflitantes, como unidades hidroestratigráficas oriundas de sedimentação eólica, outras tipicamente de origem fluvial e ainda aquelas associadas a lagos e planícies de inundação, se pode prever o quanto de heterogeneidade em sua potencialidade este sistema aqüífero possa ter.

Assim ocorre com o pacote que foi definido como Aqüífero Guarani. Machado (1998) já havia demonstrado a heterogeneidade geoquímica de suas águas. Recentemente, Machado (2005) apenas no Estado do Rio Grande do Sul descreveu nove (9) unidades hidroestratigráficas que poderiam fazer parte de um amplo sistema. Levando em consideração o topo e a base do sistema (unidades hidroestratigráficas Serra Geral e Rio do Rasto) somariam 11 unidades.

Tanta variação na constituição litológica do sistema aqüífero já indica que sua potencialidade pode ser muito variável. Associanda à sua condição topo-estrutural, a unidade hidroestratigráfica Botucatu pode estar com níveis tão profundos, que os poços produtivos perfurados nas rochas basálticas, se tornam secos quando encontram seus arenitos. De modo similar, cotas muito elevadas do topo desta unidade na região sudeste de Santa Catarina, inviabilizam o armazenamento de águas subterrâneas nesta unidade. Em contrapartida, na região da fronteira oeste do Rio Grande do Sul as unidades hidroestratigráficas Botucatu e Guará apresentam as melhores vazões do estado.

Pelo exposto se pode deduzir que o SAG não apresenta homogeneidade com relação à sua potencialidade, podendo mostrar poços com ótimas vazões, porém apresentando também poços secos ou com vazões irrisórias.

Quanto à sua potenciometria, comparando-a com os resultados já conhecidos de outros parâmetros como estruturação, hidroestratigrafia e qualidade química, se pode chegar a conclusões reveladores. A tese apresentada por Silva (1983), embora focada na hidroquímica e isotopia do Sistema Aqüífero Botucatu, mostra uma interessante conformação do fluxo subterrâneo no Estado de São Paulo, todo ele dirigido para a calha do rio Paraná, não mostrando percurso interestadual muito menos em relação a outros países limítrofes. Fato semelhante ocorre no Estado do Paraná (Rosa Fº et al, 2003) onde o Arco de Ponta Grossa divide o aqüífero em pelo menos dois sistemas de fluxo independentes.

Machado (2005) estudando a potenciometria das unidades hidroestratigráficas que compõem o Sistema Aqüífero Guarani, conclui que os fluxos são diferentes em pelo menos quatro compartimentos, sendo que pela conformação das linhas de fluxo, as áreas de recarga e descarga do aqüífero estão circunscritas ao território do Rio Grande do Sul.

Em outros estados brasileiros, esta mesma conformação potenciométrica mostra um circuito fechado quanto à recarga e descarga do aqüífero.

Pelo exposto se pode deduzir que além de sua descontinuidade estrutural, este sistema não apresenta as características típicas de um aqüífero com fluxos de água transfronteiriços, sendo infundadas as preocupações de que a captação dele no Brasil pode afetar suas reservas de água em outros países limítrofes.

Conclusão - O Aqüífero Guarani foi muito bem vendido para a mídia, o público leigo e os técnicos desavisados. Seu marketing foi tão perfeito, que organizações como a ONU e o Banco Mundial apressaram-se na preocupação de “preservar” para o futuro, um bem tão precioso da humanidade. Entretanto, aquele chavão muito conhecido de que, “o Aqüífero Guarani é um megareservatório de água doce, o maior lençol transfronteiriço de água subterrânea do mundo, que poderá abastecer a humanidade por centenas de anos”, aguçou a curiosidade de técnicos e cientistas, que procuraram provas de sua real existência.

Felizmente, os estudos que estão sendo realizados por várias instituições universitárias e órgãos públicos têm demonstrado, de maneira inequívoca, as verdadeiras dimensões deste sistema aqüífero, que muitos julgam ter sido descoberto. Desse modo, o Sistema Aqüífero Guarani como foi definido é na realidade um simples agrupamento de unidades hidroestratigráficas, não necessariamente com conexão hidráulica, totalmente sescontínuo e com várias compartimentações, não apresentando as condições típicas de um aqüífero com fluxo transfronteiriço e contendo extensas áreas com águas de péssima qualidade, variando de salobras a salgadas.
Em outras palavras não será a salvação da humanidade.

Figura 1. Mapa Estrutural do SAG no contexto do Cone Sul modificado de Araújo et al.,1999, Paulipetro (1982) e Zálan et al. (1986).

José Luiz Flores Machado
CPRM – Serviço Geológico do Brasil
E-mail: machado@pa.cprm.gov.br

 
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