Lançamento submarino de esgotos
O sistema de esgotos sanitários e de águas pluviais
de Santos, estado de São Paulo, foi planejado, projetado e
construido por Saturnino de Brito, no início do século
vinte. Cidade litorânea, portuária, plana, ruas sem declividade,
apresentou grandes problemas para a implantação. A necessidade
de dotar os coletores de declividades obrigou ao aprofundamento dos
tubos, das valas e dos poços de visita. O alto nível
freático exigiu a utilização de materiais especiais,
como cimento amianto e plástico no lugar de manilhas de barro,
por causa da grande infiltração. Quando um trecho do
coletor chegava a uma profundidade crítica, construia-se um
poço de visita de duas câmaras, uma das quais seca, onde
era colocada uma bomba de recalque que elevava o esgoto ao início
do trecho seguinte, no final do qual, novo recalque era previsto e
assim sucessivamente. Quem conhece Santos e São Vicente deve
ter visto alguns quiosques, cilíndricos, com teto cônico,
fechados, revestidos com ladrilhos coloridos. Bonitos, enfeitam praças,
mas são estações de recalque de esgotos, maiores
do que as existentes nos poços de visita normais.
O grande crescimento da cidade, importantíssimo porto da exportação
brasileira, principalmente do café paulista, além de
emergente polo turístico, quase único para a então
crescente população paulistana, tornou insuficiente
o sistema. Muitas estações de recalque não tinham
mais capacidade, havia escassez de energia elétrica que interrompia
o funcionamento das bombas. Um dos poços, bem na esquina da
Conselheiro Nébias com a Av. Atlântica, centro turístico
nobre da cidade, freqüentemente transbordava, jogando o mal cheiroso
líqüido nos passeios, na avenida e na praia.
O lançamento final do esgoto era feito no início da
Praia Grande, no Boqueirão, deserta naquela época, junto
ao morro onde se localiza o forte de Itaipu. A passagem da tubulação
da ilha para o continente era feita pela Ponte Pênsil, abaixo
do leito carroçavel, onde haviam sido fixados os emissários
finais. A própria ponte, que se tornou um dos cartões
postais de São Vicente, foi construída especialmente
para a passagem dos tubos e das viaturas utilizadas na construção
do emissário. Ainda hoje existe e é utilizada no tráfego,
paralelamente à nova, de concreto, bem mais ampla.
O lançamento, que não incomodava ninguém, pois
a Praia Grande era desabitada e também ninguém dava
muita atenção à poluição do mar
já que, infinito como era, tinha enorme capacidade de diluição
e auto-tratamento, era feito numa pequena enseada, que banha o morro
de Itaipu e o início da praia. Como regionalismo brasileiro,
pequena enseada é chamada de saco. Isso me lembra o projeto
de lançamento de esgotos do Rio de Janeiro, em que se planejava
lançar o efluente final no saco do Major. A idéia foi
abandonada, para não se causarem melindres com o Exército.
Na segunda metade do século passado o sistema estava totalmente
inadequado e projetou-se uma grande reforma e ampliação,
com grandes emissários de concreto ao longo das praias e lançamento
submarino final em alto mar.
Os oceanos têm capacidade de auto-depuração praticamente
infinita, consumindo a matéria orgânica por meio da fauna
marinha e implodindo as bactérias pela ação osmótica
da água salgada. O perigo é que as correntes marítimas
poderão trazer o esgoto de volta às praias antes que
a depuração seja completada. É feito então
um levantamento dessas correntes e dos ventos que as causam, procurando
determinar-se a crítica ou seja, a que não levará
os esgotos ao alto mar, mas o refluirá à costa.
Na baía de Santos esse levantamento foi feito de forma meio
romântica. Foi assim: reticulou-se um mapa da baía e,
nos pontos de cruzamentos das linhas lançaram-se, por meio
de um barco monitorado da praia por teodolitos e bandeirolas, pequenos
flutuadores, garrafas arrolhadas contendo dentro um folheto impresso,
nos moldes das jogadas por náufragos nos filmes de cinema.
O folheto explicava o que estava sendo feito, que seria de utilidade
essencial para a solução do problema dos esgotos e pedia
que a pessoa que o encontrasse o entregasse à Repartição
de Saneamento de Santos, indicando a data, a hora e o local do achado.
Conhecendo-se o ponto, a data e a hora do lançamento do flutuador,
determinava-se a velocidade e a direção prováveis
da corrente que o transportara. O sucesso do trabalho foi notável.
Apenas cinco por cento dos flutuadores não foram devolvidos.
Levando-se em conta que muitos não devem ter sido achados por
ninguém, comprovou-se de forma eloqüente a colaboração
do povo.
O acompanhamento técnico e administrativo do projeto foi de
responsabilidade de uma comissão nomeada pelo governo, constituída
pelos engenheiros, servidores estaduais, José Chiara, Jacob
Leiner, Paulo Soichi Nogami e este digitador. A orientação
técnica foi de responsabilidade do engenheiro Antonio Garcia
Occhipinti, consultor particular e da firma Planidro, representada
pelo engenheiro José Maria da Costa Rodrigues. Outros profissionais
colaboraram. A sua não citação não é
devida a menor possível mérito de seus trabalhos, mas
a fraca memória deste velho contador. A parte relativa aos
estudos das características físicas, químicas
e biológicas das águas da baía de Santos foi
desenvolvida brilhantemente pelo insigne engenheiro, também
servidor estadual, Armando Fonzari Pera, este extremamente.
Realizando inúmeras e cuidadosas análises, Pera determinou
a equação da concentração em função
do tempo das bactérias a serem levadas pelo esgoto ao mar.
A curva C (t) é formada por uma reta horizontal inicial de
carência, em que as bactérias resistem à ação
osmótica das águas salinas, com C = Constante e depois
por um trecho correspondente à implosão das bactérias,
exponencial decrescente, definida por uma constante de tempo chamada
pelo Pera de T 90, tempo necessário para a concentração
ser reduzida a 10 % da inicial.
A idéia do funcionamento do emissário era que ele deveria
ter um comprimento mínimo, mar adentro, de maneira que os esgotos
lançados, se fossem apanhados pela corrente crítica,
deveriam atingir a praia depois de um tempo correspondente ao de carência
somado ao necessário para que a concentração
de bactérias chegasse à praia com valor inferior ao
permitido pela regulamentação balneária.
A primeira determinação feita para esse comprimento
foi de 6 quilômetros.
Aspecto interessante da construção do emissário
final foi o seu assentamento no fundo do mar. Construiu-se na praia
do José Menino, perpendicularmente a ela, um cais provisório,
de pedra e concreto, no extremo do qual navios rebocadores apanhavam
os tubos de aço, previamente soldados uns aos outros e os puxavam
devidamente tampados nas extremidades, para flutuarem. Chegados ao
ponto de asentamento, eram retirados os tampões e os tubos
afundavam lentamente, chegando ao fundo. Mergulhadores profissionais
especializados, com equipamento adequado de mergulho, soldavam o trecho
recem chegado ao já assente e o ancoravam ao fundo com blocos
de concreto.
Pensava-se em, terminadas as obras, destruir o cais, recompondo a
paisagem anterior, mas a população acostumara-se a utilizá-lo
para passeios a pé e pescarias, tendo-se decidido então,
ajardiná-lo, incorporando-o à urbanização
da orla.
Diga-se por sinal que o jardim litorâneo das praias de Santos
consta do livro de recordes do Guiness, como sendo o maior do mundo.
Engenheiro Euclydes Cavallari
(11) 3031-6473
alicecv@uol.com.br
A ponte pênsil, construida para a passagem
do emissário do sistema Saturnino de Brito.
(Quadro de Benedito Calixto)
A ”Cara de Cavalo”, a ilha de São Vicente, onde
se situam Santos e São Vicente. Talvez dê para ver, no
encontro das duas enseadas, o cais construido durante obras do lançamento
submarino